Olho o benigno pesar que se enovela nas camadas de névoa. O rio escondeu-se, sob suspeita de não se dar a mostrar para o que remanesce do dia. As pessoas prosseguem o seu viandar, indiferentes. Podiam preencher uma caderneta sem critério, se a atenção não estivesse noutra sentinela.
As setas nas ruas seguem outro critério. Combinam com a toponímia – disse uma vez, em arroubo meio poético, o edil. Agora que passou tanto tempo, diz-se que o outrora edil passeia a decadência pelas ruas da cidade, sem dirigir a palavra a vivalma. Ninguém prestava atenção à decadência do lúgubre homem, que se recusava a ficar preso dentro de casa e arrastava a solidão pelas ruas que (dizia-se, não sem exagero) que já foram seu domínio. O inapelável sofrimento alheio não é da lavra dos que dele são testemunhas. As ruas pareciam emagrecer por osmose com a magreza do velho homem. Ou era do efeito do nevoeiro persistente, que deitava um pouco de noite sobre a luz diurna.
Podia fazer uma caderneta dos loucos, dos mentirosos – com o cuidado de advertir que uns e outros não são sucedâneos. Mas como podia organizar a caderneta se não sabia como inventariar os atores? Os chapéus bizarros não pertencem só aos loucos. Os mapas esventrados por punhais demoradamente ensanguentados não são usados apenas pelos mitómanos. A caderneta teria de envergar outras categorias. Não sabia quais, depois de algum pensar.
Continuava à espera que o nevoeiro levantasse para dar lugar à paisagem que ornamentava os olhos. Perante e teimosia do nevoeiro, agasalhava os ossos contra o magma fundente. Sempre soube que a combustão era um rastilho que não se apagava. Dizia-o, às vezes, para convencimento de um envelhecimento que se adiava no frémito da vontade. Não queria capitular, a não ser naquele tempo ausente que se sobrepusesse à vontade, dinamitando os folhos que aformoseiam as mangas diametrais. Era por dentro dos sonhos desenhados pelo rigor dos milímetros que se anunciava uma grande mentira. O outrora edil só era uma mentira para quem sentenciava a sua decadência.
Não seriam os elegantes denunciadores das farsas a adestrar clepsidras radiantes. As mentiras (disse-o o edil, nos seus faustosos tempos) só pertencem a quem as tutela. Não há caderneta que as inventarie, a não ser nas funduras onde se entretecem os segredos.
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