22.11.21

Uma árvore no meio do mar

Gorillaz ft. Fatoumata Diawara, “Hong Kong” (live”, in https://www.youtube.com/watch?v=4EKHacXZn7I

Pelas braçadas do mar, parece que a manhã se esgotou no anátema dos poltrões. Predomina o olhar vazio, como se a paisagem fosse desprovida de gramática. Espera-se que a noite não embacie os navios que guarnecem os mercados com a mercadoria que impede a melancolia. Este é um lugar mercantilizado, sem almas que se empenhem a elas mesmas.

Povoam as ruas, os delatores. Arranjam-se, apessoados, todos os dias da semana. Ao fim de semana entregam-se ao desleixo. Deixam de falar como manda o formalismo académico, esquecendo-se do coloquialismo que alinhava as suas alcunhas. Os outros nem dão conta. Apessoados ou apenas desligados da elegância quando o fim de semana anuncia o despojamento da rotina, conseguem ser como os demais – anónimos. 

Um deles que gritou, no meio de uma rua semi-habitada, que havia uma árvore no meio do mar. Os transeuntes ocasionais prosseguiram como se não se passasse nada. Ele ficou no meio da rua, sem medo de ser atropelado pelos carros incessantes, de dedo em riste a repetir a frase improvável: “uma árvore no meio do mar. Eu vi. Eu vi.” Uma rapariga chegou ao pé dele, mas ele não deu conta, tão absorto na sua epifania: 

Onde viste uma árvore no meio do mar?

- No mar ali à frente, depois da enseada onde o farol fala com toda a latitude. 

Não estou a ver...

- Já não consegues ver terra desse lugar. É como se fosse uma ilha súbita que passou a povoar uma nesga de mar. Mas é só uma árvore. 

A rapariga sacudiu a chuva que começara a cair. Ficaram os dois parados no meio da rua, indiferentes aos carros, por sua vez a eles indiferentes. Ficaram os dois, sem medo da chuva insistente, à espera da noite. 

- Se ficares comigo mostro-te a árvore no meio do mar. Tens de esperar pela noite.

Porquê a noite?

- A árvore tem medo do dia. Tem medo que os piratas oficiais venham nas fragatas e a aprisionem por apropriação da geografia do mar.

Já de madrugada, subiram ao farol, clandestinos. Esperaram pelo movimento rotativo do farol. Ele indicou com a mão o quadrante onde se encontrava a árvore no meio do mar. Instou-a a esperar pela boa localização do farol, tudo em silêncio para não serem encontrados. Mas o farol percorreu o horizonte inteiro onde só o mar era mapa. Não viram a árvore no meio do mar. A rapariga impacientou-se:

Não vejo a árvore.

- Espera! No fio do horizonte há uma neblina que esconde a árvore. Espera só mais um pouco. 

O tempo correu o seu curso normal. Já a alvorada despontava e não havia notícia da árvore no meio do mar. A rapariga intuiu que ele queria companhia para derrotar a insónia, ou para terçar armas contra a solidão temível da noite. Quando desceram a escadaria do farol, ele murmurou:

- Acredito que afinaram o farol e ele deixou de apontar ao lugar onde a árvore pertence à imensidão do mar. Acredita em mim: ali existe, algures, uma árvore hasteada no meio do mar.

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