Nem com a melhor da maquilhagem conseguia ser um disfarce de si mesmo. Atirava-se, sem comedimentos, aos que auguravam um confortável sucesso como agente secreto: “eu não servia para agente secreto. Sou indisfarçável. O antónimo do 007.”
E não foi por não tentar. Quando foi acometido por uma crise existencial, sem saber o que fazer à carreira, logo depois de ter abandonado as Finanças (onde trepou na hierarquia até ao posto de inspetor-principal), tentou os serviços secretos. Ainda hoje está fora da compreensão a súbita pulsão pelos serviços secretos. Podia ter escolhido os submarinos, ou a ajuda humanitária num pobre país africano, ou a carreira diplomática, ou as organizações internacionais (candidatas não faltavam), ou um qualquer submundo. Ficou-se pelos serviços secretos.
Foi aos exames, sem convicção. Durante o processo de recrutamento, cada alvorada parecia um fio à meada sem paradeiro. Era como se estivesse num mapa estranho e ele órfão nessa geografia. Sem convicção, foi saltando as etapas eliminatórias. Na hora H, quando tudo se encaminhava para ser agente secreto, faltou à derradeira incumbência. Devia ter bons predicados para a função. Apesar de ter faltado àquela incumbência (estava escrito no regulamento, com clareza: “os faltosos serão automaticamente eliminados do processo de recrutamento”), um dos chefes chamou-o ao gabinete. Faltou, outra vez. Receava ter de sucumbir à persuasão do manda-chuva. Nessa altura, já tinha tomado a decisão: não servia para agente secreto.
Um dos melhores amigos, o único que estava ao corrente deste processo, continuava atónito, agora em medida dupla. Nunca percebera por que o amigo concorreu aos serviços secretos. Um dia disse-lhe:
- Tu nem no Carnaval te consegues disfarçar. És a pessoa mais indisfarçável que conheço. Estás nos antípodas dos serviços secretos. Continuas a teimar na imprevisibilidade.
- Tens razão. Ainda por cima, atenta contra os nossos princípios anárquicos...
- E agora, que estavas com um pé dentro dos serviços secretos, decides vir embora sem dizer nada!
- É a imprevisibilidade de que falas. Ou então, apenas não sei o que quero. Para saber o que não quero, tenho de estar às suas portas para me autoexcluir.
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