12.11.21

Shakespeare também usava chapéu

The Clash, “Know Your Rights”, in https://www.youtube.com/watch?v=5lfInFVPkQs

Já não se pode dizer a famosa frase “chapéus há muitos”, porque eles rareiam. Já quanto à parte terminal da afamada frase, diferente conclusão seria retirada pelos observadores da contemporaneidade: os palermas estão em alta, tamanha a sua abundância. Mas não é de palermas que o assunto vem à colação, é de chapéus. Sinal dos tempos: a bordadura da moda está nos penteados, não nos chapéus que escondem os penteados. Os homens já não usam chapéus. Usam penteados a preceito. Os que passaram o prazo de validade capilar, estão convencidos que mostrar a calvície também é moda. 

Havia um rapaz calado que aparecia sempre de chapéu. Os outros, tão ávidos da sua superioridade estética, escarneciam dele. Ele não se importava. Nem protestava os reparos desagradáveis patrocinados pela estultícia da superioridade estética. Sabia, no seu íntimo, que não passava de bazófia, era o mostruário da frivolidade de quem se julgava no púlpito da estética – como se a estética não fosse um julgamento subjetivo e como se a estética fosse tudo o que contasse. 

Ia mudando os chapéus, mantendo a extravagância que não capitulava perante a insistência da injúria. Sentia um incentivo para a diversidade de chapéus de cada vez que um mentor da estética dominante se ria na sua cara com o desdém próprio dos inconsequentes que se julgam superiores. Ele não acreditava na superioridade de ninguém (sem ser um fiel seguidor da igualdade tirada a fórceps). 

A certa altura, os outros queriam saber como era o penteado do rapaz. Dominados pela dignidade de não forçar alguém a fazer o contrário do por si desejado, esbarravam na extravagância diária do chapéu sempre diferente. E no rapaz que, metodicamente, nunca retirava o chapéu. Os outros iam sendo corroídos pela curiosidade. Já não se importavam com a sucessão interminável de chapéus; só queriam saber como era o penteado do rapaz.

Ele não capitulou às oportunistas manobras de sedução – a páginas tantas, os que dantes dele escarneciam agora eram amizades. Quando lhe perguntaram por que não mostrava o penteado, limitou-se a retorquir que ninguém conhecia o penteado de Shakespeare.

Sem comentários: