Não sabia dos lugares ocupados que podiam ser miradouros. Escondido das pétalas abraçadas às silabas sibilinas, arrancava um esgar de surpresa aos que me ouviam desde o estaleiro desarrumado. Mas não era de escombros que falava. Desoprimia a faca apontada à jugular, então a salvo sem que temesse pelo sangue fundacional. Trazia palavras ricas, a personificação do ouro ou de outra substância ainda mais quimérica.
Mas havia uma dúvida perene: o paradeiro não se encontrava com os lugares ocupados; parecia que só conseguia habitar em lugares desocupados, a franquia do desmedo que se abotoava no pescoço agitado. Era eu contra a minha circunstância, num contínuo abraço na fuga dos outros. Alguém me dizia que era agiota de mim mesmo. Não dei importância: teria de ir ao dicionário para saber o que significa “agiota” (ou fingia muito bem).
A cortesia do mar não tinha paga. Era como as outras pessoas que encontram serenidade no mar, mesmo quando o mar se agita num tumulto que drena as tempestades no seu caminho. As mãos estavam suadas e não era da maresia que acompanhava a coreografia das marés e os ventos irreparáveis. As mãos estavam suadas e devolviam a areia cuspida para a estrada. À medida que entardecia, na praia sobejava um punhado de pessoas. A luz timorata parecia sossegar o mar, que fazia descer os degraus das ondas. E as pessoas, enfim, partiam, deixando a praia entrega ao seu ermo.
Às vezes, apetecia-me sair à noite e espalhar a solidão pelas ruas da cidade, pelos recantos mais sombrios, na presença das companhias menos recomendáveis (por assim dizer, para não ofender os bons costumes, que são uma despertença). Se em vez de juras acabasse por desfeitear a insónia contumaz, talvez tivesse mais préstimo. Não ficava a lobrigar nas dores sem pátria nem nas curas sem colheita. As paredes da casa não estariam tingidas pela persistente peregrinação de consumições que não tinham rosto.
A enseada escondida era refúgio posterior. Combinava com o tojo e com as tímidas flores esbranquiçadas que arroteavam a Primavera e deixava que o vento cortante desarrumasse os pensamentos por sua vez desarrumados. Numa dessas alvoradas, ainda sem sono por sentinela, comecei uma carta. Já levava três páginas, corridas a eito, as palavras porventura entarameladas com o esboço da alma que se desenhava perante o mar contínuo. Não acabei a carta. Ainda hoje me lembro de passagens selecionadas ao acaso, num amontoado indiferenciado de palavras, como se juntas não cuidassem de ser inteligíveis.
Nunca dei a carta por acabada. Nem sei a quem era destinada.
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