20.4.22

Quem sai aos seus

Idles, “Crawl!” (live at CBS), in https://www.youtube.com/watch?v=X2X2tkgSl_U

Um galanteio servido em pés de barro, como os deuses que se mimoseiam para o serem: “quem sai aos seus...”. As reticências ficam a adejar sobre a frase, deixando-a em aberto, enigmática. Essa é a propriedade das reticências: são inconclusivas e deixam nas imediações o sabor azedo a indeterminação. Pode-se dizer que é fácil ler nas entrelinhas para depressa se capturar o sentido da frase interrompida pelas reticencias; ou que as reticências deixam a incerteza abraçada à frase não concluída, fecundando a sua ambiguidade.

Dir-se-ia: quem sai aos seus está na melhor posição para confirmar o preceituado. O visado tem de si um conhecimento ímpar, imbatível quando comparado com os seus observadores. Ninguém como ele passa tanto tempo na sua pele. Os observadores exteriores dele possuem apenas fragmentos dispersos. Passando grande parte do seu tempo embebidos nas suas próprias epidermes, estão longe de alcançar o conhecimento interior daqueles de quem se pronunciam, exageradamente, lídimos conhecedores. 

Em favor do autoconhecimento também se joga o conhecimento dos que lhe deram vida. Para alguém perorar sobre as semelhanças entre progenitores e respetiva prole é preciso ter conhecimento mais do que aproximativo de uma imensa constelação de pessoas: os pais e os filhos de quem se diz serem cópias mais ou menos fiéis. O que se acrescenta à dificuldade da empreitada: quando de alguém se diz “quem sai aos seus...”, não só dessa pessoa se exige conhecimento aceitável como também do pai ou da mãe com quem é cotejado. Se a exiguidade do tempo em que cada observador passa aprisionado à sua própria pele limita as capacidades cognitivas enquanto observador exterior dos outros, acrescem as limitações quando é preciso comparar duas pessoas para, de uma delas, se atestar que é tão semelhante com um dos que lhe deu existência.

Dizer quem sai aos seus pode ser um presente envenenado, se a ambiguidade latente trepar pelas paredes da incerteza. Aqui joga-se muito mais o papel do observador do que o estatuto do observado. O que está em causa é saber em que conta o observador tem o sujeito observado. Não aquele de quem se diz “quem sai aos seus”, mas o outro que serve de comparação.

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