29.4.22

Bulhão Pato seria alguém se não fossem as amêijoas?

 

The Smile, “Free in the Knowledge”, in https://www.youtube.com/watch?v=CXbncoiKLn8

Às vezes, as pessoas ficam emolduradas na perenidade por motivos que, porventura, não seriam os por elas desejados. O que dizer de um poeta e ensaísta que é mais conhecido por ter inventado (ou dado o nome) a uma receita de amêijoas?

Os arrivistas, os que se adestram em bicos dos pés para terem o seu minuto de pública glória, não se importariam de ver o seu nome debruado a ranço desde que lhes garantissem que ficavam eternizados na memória de um povo. O que eles mais querem é este reconhecimento público, como se fosse prova de vida sem a qual a sua vida não teria ficado marcada no indelével registo dos que emprestaram uma qualquer utilidade ao teatro público. Segundo os arrivistas, é o que faz a diferença para os anónimos, a gente indiferente que não cativa o interesse dos demais – gente-gentinha. E se há critério que deve ser aferido no tempo coevo, é um voyeurismo virado do avesso: a vida privada é coletivizada a instâncias do próprio, que a mostra sem filtros nem pudor a quem for apanhado no caminho.

Uma interrogação sobre Bulhão Pato: não teria preferido distinguir-se no escol de ensaístas e de poetas, em vez de saber (se é que na dimensão em que se encontra alguma coisa é dada a saber) que o seu nome aparece diariamente nas ementas dos restaurantes a adjetivar um prato de amêijoas? Ou não: seja suposto que Bulhão Pato também era um emérito gastrónomo; e que de si não teria tanta consideração, ao ponto de deixar em testamento a vontade de que o seu nome fosse exportado para a toponímia de uma rua numa cidade qualquer por causa da iguaria de amêijoas que legou ao património gastronómico. Bulhão Pato seria reconfortado (se é possível haver conforto para os mortos) ao ser reconhecido como emérito gastrónomo.

Haverá poetas e ensaístas que, nos seus casos, reputariam de ultrajante a conotação de seus nomes com um bivalve. Sem desprestígio para os bivalves que, não estando acometidos por toxinas que os tornam incomestíveis, são uma iguaria distintiva. Mas esses poetas e ensaístas terão de si outros planos para quando deixarem de pertencer ao elenco dos vivos. Querem ser reconhecidos como poetas e ensaístas, não como o poeta e ensaísta que se deu a conhecer pelos dotes de gastrónomo. Pois o mantimento que se deifica não resulta do cadáver de um animal superiormente metamorfoseado numa iguaria, mas da sublime manjua da alma servida nas estrofes e ideias ensaiadas nos escritos de poetas e ensaístas.

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