19.4.22

Um cético não é necessariamente sorumbático

Hinds, “Spanish Bombs” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=ChpMPhuuG-M

Perguntaste o que é um cético. Depois de fazer as vezes de dicionário (sem laivos filosóficos – apenas a voz corrente do léxico), estabeleceste uma relação causal: um cético é uma pessoa maldisposta, carrancuda, incapaz de sorrir sobre o mundo que é o seu habitat. Desta vez não perguntaste; tiraste a tua conclusão.

A conversa não podia devolver-se ao silêncio com o assunto tratado nestes termos. Desta vez foi a minha vez de desfiar uma interrogação: por que razão um cético, só por o ser, tem de ser taciturno? Deixaste que o silêncio demorado respondesse por ti. Não sei se percebeste a precipitação da conclusão (cético igual a maldisposto) à medida que o silêncio era a tradução da resposta. Emparelhei o meu silêncio pelo teu, talvez esperando que um prolongado silêncio confirmasse a tua estatuição (e espalhasse sal sobre as minhas existenciais dúvidas em carne viva, antes que desse corda às elucubrações filosóficas).

A páginas tantas, interrompeste a ditadura do silêncio:

Se um cético desconfia da bondade das coisas à sua volta, se ele sopesa as desvirtudes quando fecunda a análise, não pode ser uma pessoa com as pazes feitas com o mundo. Não pode ser uma pessoa que irradia claridade, contaminando os outros com essa claridade. Não pode ser uma pessoa atravessada pela positividade da vida. Tem de ser mal-encarado, melancólico, desesperançado. Uma pessoa desesperançada não tem motivos para sorrir e para vestir um rosto resplandecente, nem para alijar as nuvens plúmbeas que são sua natural companhia. Só vejo oposição entre um cético e uma pessoa com a pujança da alegria.

Tentei contrariar a visão pueril da antinomia:

O ceticismo é uma posição perante a realidade exterior. Não é a determinante necessária de um comportamento, como se a identificação de um cético ditasse o reconhecimento de um sorumbático. Se um cético desconfia do equilíbrio cósmico em que as coisas se entretecem, ele limita-se a povoar o pensamento com as provas do desequilíbrio (cósmico ou de outra natureza). Muito embora alinhave a desconfiança metódica e suspeite que as coisas conspirem para agradarem a divindades malévolas (repara: um cético que seja crente não identifica demónios; reconhece divindades malévolas) que, em seu devido lugar, cuidam de espalhar a rede tentacular da desesperança, não vão os humanos soçobrar num excesso de otimismo que, ao não ser resgatado, ele sim povoa a angústia e a desesperança imputadas a juras não cumpridas. Um cético está de pé atrás – é a sua genética – sem que esteja proibido de esboçar um sorriso, ou de repudiar a boçalidade tantas vezes exibida por pessoas irritantemente otimistas. Na contabilidade final, é o cético que tem motivos para ficar bem-disposto: não esperava grande coisa do futuro e o futuro cuidou de não o desiludir. Para um cético, isso reconverte-o em pessoa com direito de admissão, alguém que não medra em angústias gratuitas, deixando para memória futura um leve, acidulado sorriso, não mergulhando nas profundezas da melancolia. O otimista irritante é que habita frequentemente as caves da má-disposição de cada vez que as profecias do cético se confirmam (o que, de acordo com o cético, tem elevada probabilidade de acontecer). Ora, se o cético acerta nos preparos do mundo e vê confirmados os seus presságios, não tem razões para ser maldisposto. A menos que, além de cético, seja masoquista.

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