28.4.22

Levedura

Mogwai, “Boltfor”, in https://www.youtube.com/watch?v=xZf9svkQRZM

Os olhos levemente frutados povoam o lugar. Remexem os haveres, mentalmente, numa tentativa de arrumar o inventário que parece impossível. As sílabas acompanham a fala vagarosa, em murmúrio. Não obedece aos verbos orquestrados nos lugares-comuns. Não decai na sumptuosa indiferença, nem que seja por exigência do critério com que se apura a matriz da vida.

Entre os dedos, insinuam-se imagens embaciadas. São resgatadas a fragmentos do passado que não aparecem na frontaria (os compêndios esquecidos da história). Existem paredes-meias com as entrelinhas. Estes espaços vagos não são órfãos. Têm uma pertença. É um sortilégio dedilhá-los entre as páginas de nevoeiro que se desembaraçam do tempo que se repete. São as pétalas desaçaimadas que frutam o aroma original que exala nas entrelinhas dos dedos. 

Diz-se que o inesperado tem lugar na gramática insólita que se arremata da contrafação. Os olhos vívidos não desperdiçam um milímetro dos dicionários que passam à sua frente. Pelo menos, é no que querem acreditar. É esta a maresia que se compõe na exigente tela desenhada com as palavras arrancadas ao mutismo. O que se vê não corresponde necessariamente ao que existe.

É como se fosse ator de um filme de que sou espetador. Um paradoxo que encontra explicação: há alturas em que temos de sair da posição em que nos encontramos para sermos sujeitos de uma estimativa. Os peritos em dores da alma mantêm que os outros são os melhores juízes de alguém que se propõe a este exercício. Discordo. Não têm o menor conhecimento de quem se propõem a ser juízes. A avaliação será um viés do princípio ao fim, com uma reduzida probabilidade de acerto condicionada pela fortuita coincidência.

Em vez de figurar no centro de um palco sob o olhar judicioso da plateia, subo a um promontório alcantilado e coloco-me, sozinho, no lugar mais ermo, onde a falésia se despenha verticalmente. Os olhos fechados são a caução da maresia que serve de régua hermenêutica. As imagens desfilam em revoadas. Congeminam-se em rima com o vento inominável que se compôs. As imagens são a levedura das palavras estilhaçadas num conciliábulo onde as interrogações são acrescentadas aos minutos passantes. 

Até que a madrugada se extinga e o cansaço aldrabe a lucidez. No abrir dos olhos, a consciência de não ter saído da sala. E todas as interrogações havidas com a levedura do pensamento aparecem tatuadas nas paredes, à espera de serem descontadas no débito das indecisões.

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