Quando estudei na universidade, esbarrei numa disciplina que ensinava o bê-á-bá da Europa. Eu, que nunca fui sensível às coisas da política, e que da História tenho um modesto entendimento da sua serventia para sermos gente com uma bússola que ensina o hoje, tive a leve impressão que ter ficado vacinado contra a política, a economia, as instituições, a Europa. Até o desinteresse da História começou a fruir. Admito: a embirração ter-se-á ficado a dever às várias tentativas fracassadas de passar na disciplina: só à quarta tentativa, e depois de algumas explicações com um primo de um amigo, consegui, e à justa, passar no exame e ficar com habilitações mínimas para traduzir a Europa que nos rege.
Há pouco disse: fiquei vacinado contra a Europa, mas julgo ser mais rigoroso admitir que a Europa inoculou em mim os anticorpos para a repudiar. O professor era palavroso, as matérias eram debitadas num ritmo vertiginoso. Tinha a impressão de que ele se entusiasmava pela ideia da Europa, que chegou a apresentar como um resgate da cidadania tantas vezes lesada pelos egoísmos nacionais. Apesar de o professor avisar que não era embaixador da Europa e não era pago pelas suas instituições para apregoar a ideia de Europa e as virtudes do seu funcionamento, não conseguia esconder a sua predileção. Uma predileção discreta, mas predileção, em todo o caso.
À medida que ia esbarrando nos contrafortes do insucesso académico na disciplina que ensinava a Europa, ia crescendo a minha irritação com a Europa (e com a rigidez do professor – e com o próprio professor). Jurei que não podia virar as costas à Europa quando, enfim, me desembaraçasse desta disciplina, que foi uma das últimas antes de concluir o curso. Tanta insistência na Europa não podia atear a minha futura indiferença. Assim contrariei os suores frios que sentia de cada vez que abria o manual sobre a Europa e ouvia ou lia notícias sobre a Europa, sempre tão pesporrente na sua ação.
Os anticorpos que a Europa em mim deixou tatuados jogaram a seu desfavor. Jurei vingança. Podem-se acusar de estultícia por dirigir a vingança contra um objeto político que nem sabe da minha existência e que não teve culpa nas sucessivas dificuldades que encontrei até passar no exame à quarta tentativa. É assim que eu sou – e quem nunca tropeçou nas limitações de si mesmo, que levante mentirosamente o dedo. A embirração com o professor, também cá canta e também, à sua medida, contou. Foi sendo anestesiada ao deixar de ter aulas com ele. Mas acuso-o, e ao modo entusiasmado com que divulgou a Europa, pelos anticorpos contra ela.
Hoje, à conta dos anticorpos, sou votante em partidos ou candidatos que inscrevem a rejeição da Europa nas primeiras linhas dos programas políticos. É o que me mobiliza. Não quero saber das restantes propostas políticas que hasteiam como bandeiras, se são justas e aceitáveis, o que prometem para o futuro, se correspondem a projetos políticos abjurados pelos habituais tutores do sistema político. Nada disso me interessa e estou pronto a suportar as consequências (até as pessoais) se, algum dia, um desses partidos marginais se alojar no poder. Só me interessa a sua agenda anti-Europa.
Hoje, quando reflito durante uma campanha eleitoral sobre o voto, ou quando dedico atenção ao processo político que a cidadania exige (para minha grande surpresa, pois dantes a ela jurei desinteresse), situo-me sempre nos antípodas da Europa. Se a Europa se move para um lado, eu prossigo para o lado oposto. Se a Europa defende democratas, não tenho pejo em alinhar com autocratas. Se a Europa denuncia quem ofende os direitos humanos, faço de conta que estou a dormir. Se a Europa quer ser maior e mais presente, torno-me exacerbadamente nacionalista. Se a Europa propõe liberalizações de vários jaezes, torno-me intrinsecamente marxista. Sou, sempre, o contrário da Europa.
Eis o poder heurístico que uma disciplina sobre a Europa teve sobre a cidadania que tenho como arnês. Se o professor que instruiu sobre a Europa soubesse, mudaria de método?
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