Eletrificada a cidade, ficava órfã a penumbra. Não se extinguiu. Continuava a sondar as sombras que pareciam periscópios nos interstícios da luz que fingia a claridade. A jurisdição da noite tinha mudado. A noite já não era muda, a eletrificação tinha banido os vultos que dantes povoavam a noite. Já não se dizia que a noite é a tradução das trevas. No simpósio inaugural, o regente encheu-se de brios e perorou longamente acerca das virtudes que se exercem sobre os que desmatam o ensimesmar. “A vida em conjunto é a promessa do futuro”, rematou o regente em tom profético, sem esconder a queda para a má poesia. Não era de figuras de estilo que os súbditos precisavam. Alguns não perdoam que o sistema tenha garantido um módico de luz para a noite, extinguindo o sinónimo tumular de trevas. Tome-se, como exemplo, os meliantes que tinham a noite como horário de trabalho. Complicou-se o seu labor. Por todos os lados, as candeias acendiam uma luz artificial que era incompatível com os biombos onde se escondiam os meliantes noctívagos. O regente não o disse – porque se antecipasse este efeito, tê-lo-ia ostentado como proeza da sua lavra: a eletrificação da cidade daria refúgio à segurança, perseguindo os meliantes que quisessem continuar a delinquir. O que não podia ter sido anunciado (e foi-o, numa habitual confusão entre desejo e realidade), é que “toda a gente” iria ovacionar a eletrificação da cidade. Os apóstolos do estabelecido regozijaram-se com a segurança caucionada pela eletrificação da cidade. Os meliantes contestavam a destruição do seu plano de negócio e do habitat natural. E os meliantes não são cidadãos diminuídos. Alguns deles mudaram de cidade, procurando um lugar onde ainda vigorassem as trevas noturnas. Outros reconverteram o domínio do negócio. E – dizem as “boas línguas” – reabilitaram-se. A jurisdição estava, enfim, quase enxuta.
14.4.22
Jurisdição sem rogo
Ratso (ft. Yasmine Hamdan), “I Want Everything”, in https://www.youtube.com/watch?v=cCQLSddKKHg
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