21.4.22

Espectros (short stories #380)

Thurston Moore, “Leave Me Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=sXJnKf4bBEU

          São as farsas que se estimam no disfarce dos espelhos polidos: são farsas, mas aparentam lisura. Se a pele não for esconderijo, arrojam-se os dias futuros na contabilidade versada no xisto gasto. Os rostos são apenas fotografias, não são carne e osso. São fotografias embelezadas, à mercê das quimeras descobertas por peritos. São fotografias-disfarce. Se forem a palco, ninguém dá conta da farsa. Mentem, com os dentes todos à mostra. Mas só eles sabem que mentem. Os que os ouvem comungam das palavras armadilhadas sem saberem que são ungidas pela impostura. Também eles são mentirosos: sobre eles pende a falta de diligência para descobrir a camada mais funda sob o verniz meteórico da fala. Os mitómanos emproados desfilam a pose solene, como quem exige genuflexões aos demais. São como espectros sem serem conotados como tal por quem atentamente sorve as suas palavras. Espectros, contudo: os corpos escondem-se em sombras aparentemente não vetustas, numa enseada que se esconde da lucidez, em sucessivas camadas de penumbra. Se pudessem contar as frases gongóricas, seriam catedráticas figuras. Mas as palavras são absorvidas como se fossem sacerdotes empunhando autoridade espiritual. Acreditam e não querem acreditar que apenas acreditar é prescrição suficiente. Os espectros precisam da dogmática. Precisam de uma audiência, que prescinda do espírito crítico (meio caminho andado para a fruição de dogmas). Quem os ouve é figura ainda mais espectral. Andam à procura de bússolas que transcendam a condição humana, quase roçando um estatuto divino. Afinal, os deuses podem ser confundidos com espectros (ou passar como espectros). As pessoas assim empenhadas na sua vontade não farão a diferença. Talvez não saibam que o remate peca por excesso: nem todos os espectros foram admitidos à condição de deuses – e um dos mandamentos que constitui a dogmática militante adverte que os deuses podem não nidificar na penumbra.

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