O olhar parecia perdido, como se os olhos estivessem na nuca. O revólver fazia-se sentir, a coronha ciciando uma coreografia sobre a cabeça – pedia uma roleta russa, ou outra aleatoriedade para o que desse e viesse. Podia ser do ar pesado, o dia outonalmente enxertado no advento da Primavera e uma chuva miudinha conspirando contra as almas maioritárias que admiram os dias soalheiros. O rapaz tinha acordado, absorto pelos despojos de um pesadelo que era tão vívido que se confundia com o real.
Dizia-se: é um golpe de Estado contra a Primavera. E ninguém se importava. Ninguém ouvia a advertência. A chuva miudinha continuava a ensopar as pessoas que não tinham consultado o boletim meteorológico. Pensava: como é possível não consultar o boletim meteorológico para saber como se há de sair à rua, qual a indumentária a preceito. Talvez fosse preciso um golpe de Estado nos comportamentos, mas tirou daí as ideias porque nem a superioridade moral é aceitável nem a pulsão totalitária se conforma com a linhagem.
Juntou-se ao grupo de rapazes em férias escolares que começaram a espalhar a estroinice nas ruas. Corriam desaustinadamente e atiravam com bolos podres uns aos outros, dando mais um contributo para a sujidade das ruas. Estavam encharcados pela chuva miudinha, mas não se importavam. Parecia que a chuva era o incentivo que precisavam para fazer da sua deambulação um carnaval a destempo. Pelo caminho, apanhavam pessoas maldispostas, incomodadas com a estroinice dos rapazes que, à falta de escola para os apoquentar, decidiram carnavalizar o dia outonalmente primaveril.
Uma velha viúva balbuciou uns impropérios que ninguém entendia. Na paragem do autocarro, onde também se refugiaram outras pessoas exilando-se da insistente chuva miudinha (não consultaram o boletim meteorológico), a viúva monopolizava a fala. Um dos rapazes, pressentindo que era ao bando que os impropérios se dirigiam, recuou na direção da paragem do autocarro e levou as duas mãos aos digitais, ostensivamente como provocação. A velha emudeceu. Os outros refugiados sob a tutela da paragem do autocarro continuaram mudos. O estroina vingou o dia, como se o gesto fosse a senha secreta para o golpe de Estado que, sem preparação, tinha sido montado pelo bando.
O dia outonal prolongou-se dia afora. Os rapazes só se cansaram da pose carnavalesca quando fizeram o inventário das tropelias. A velha viúva recolheu-se aos aposentos, com a imagem dos galfarros a colonizar o pensamento, enjoada com os torpes adolescentes em geral (era muto dada a generalizações). Ao menos, os foliões a destempo e a velha carcomida convergiram: um golpe de Estado tinha sido jungido com a ajuda de um dia outonalmente primaveril.
No dia seguinte, a Primavera resgatou o seu lugar depois de encomendar o arremedo de Outono a outras latitudes. Os rapazes acordaram com cefaleia. A velha não saiu de casa, não fosse dar de caras com os estroinas da véspera. Nesse dia, o golpe de Estado já tinha o esquecimento como paradeiro certo.
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