12.4.22

“Quando for pequeno, quero ser notável”

The Limiñanas, “Je Rentrais Par le Bois” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=aiK-BO_4t9U

“Um resto de modéstia que se inscreve no céu que me aparta dos sonhos.” Era assim que queria a inscrição na sua lápide. Não é que pensasse amiúde na morte, até porque pensar a morte tem dois incómodos: obriga a pensar nos trabalhos que deixamos a quem fica a cuidar do nosso legado, e essa é uma responsabilidade que devia cessar com a morte de uma pessoa; e obriga a interiorizar, talvez em pouco tempo (o que sobrar), o que deve ainda ser feito até se considerar que o tirocínio para a desvida foi feito. 

Do alto do seu metro e noventa e dois, ninguém ficava indiferente à sua passagem. Não era tanto pela estatura. Deixava uma marca, muito embora não se pudesse dele dizer que era um homem arrancado aos cânones da estética, ou que o charme era seu apanágio. Mesmo assim, muitos dos seus conhecidos admitiam que era carismático. Talvez por isso, os mais próximos tentaram empurrá-lo para a notoriedade pública. E ele, teimoso, sempre cortesmente a declinar a empreitada. Tinha as suas causas, que patrocinava com circunspeção – e muitas delas quadravam com causas populares; dele diziam ser um homem de esquerda, sem que ele alguma vez tenha confirmado a etiqueta. Era impossível vê-lo a assumir palco. A timidez sobrepunha-se ao demais. 

A ironia de fino recorte ajudava a que muitos se aproximassem dele. Em assuntos dignos de contemporânea discussão, usava os costumes para deles se apartar. Tinha sempre um aparte inesperado, um ângulo de análise que não lembrava a mais ninguém, uma semântica original. Havia poucas coisas que publicamente contestasse como odiáveis (“a única coisa que odeio é o ódio que me possa contaminar”). Um dos seus ódios era a sede irreprimível de visibilidade de uns quantos aspirantes e dos outros que, já tendo superado a formação iniciática, ajudavam a poluir o espaço público. 

Era a ironia de fino recorte que lhe permitia assegurar, com aquele tom de voz que dispensava legendas a confirmar o jocoso, que sonhava voltar a ser pequeno para, então, ser notável. Se alguém, incapaz de descodificar a ironia, o avisava do lugar-comum e lembrava “mas não te esqueças que é para velho que vais”, ele completava a advertência juntando o resto da diatribe: “pois é verdade. Vou para isso e para o esquecimento, a morada que me interessa.” 

A notabilidade não tinha sido feita à sua medida.

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