4.4.22

O ilustre desconhecido

Depeche Mode, “Nothing”, in https://www.youtube.com/watch?v=x2V2yY2KXfk

             O que não me deixa fora de mim é que ninguém saiba o meu nome.

A fonte do anonimato era um fiorde que protegia contra as marés intrusas. Para que querem saber o nome de uma pessoa se ela assenta docemente na indiferença que de si mesmo promove? Era nas repartições públicas, na companhia de telefones, em lojas avulsas, no banco, ao telefone em mundanos inquéritos, o polícia de trânsito que queria saber o nome do “senhor cidadão”: querem saber o nome e começam a conversa com a pergunta sacramental: “com quem estou a falar?” (se for ao telefone), ou “o seu nome é?” (quando é atendimento presencial).

Não é pela medida da reciprocidade que as pessoas se balizam. Talvez por não saberem que fazia questão de não saber o seu nome, não hesitavam em perguntar pelo meu. Acaso perguntariam se soubessem, logo na casa de partida, que não queria saber os seus nomes? Havia um acesso de cólera que colonizava as veias e que levava a redarguir deste modo:

Eu perguntei o seu nome?

Refreava a pergunta, conseguindo travar a língua no derradeiro instante. Às vezes, a diplomacia derrota o sangue em ebulição. 

Não deixava de pensar no monumento ao soldado desconhecido, que era costume haver em vários lugares. A comparação era desastrada: o soldado desconhecido fora morto em combate e o cadáver jazia nas trincheiras sem que houvesse uma identificação nos seus pertences. Eu não pertenço a guerras – nunca fui ao exército e das poucas proezas que me deixam ufano é ostentar a virgindade no porte de armas. Soma-se o facto de nunca sair de casa sem a identificação pessoal. Era o estatuto de anonimato que ambicionava (não a morte que me retirasse da função de testemunha da própria existência).

Se havia divisa que gostava de exibir era a de ilustre desconhecido. Pondo a ênfase no “desconhecido”, pois a ilustre condição servia para sublimar o anonimato. Tal como queria ser um desconhecido por onde quer que andasse, também desejava que não tivesse a tiracolo o epíteto de “ilustre”. Até que um conhecido me corrigiu:

Vale mais um ilustre desconhecido do que um banal conhecido. O primeiro enverga uma comenda que muitos conhecidos desconhecem.

 Doravante, repensei a dúvida existencial. Passei a estimar a minha existência pelo estalão do conhecido desconhecido. 

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