27.4.22

Vendem-se heróis

Andrew Bird, “Sisyphus” (live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=oOyfBIkbnCA

Eram os saldos, a prova derradeira de uma certa decadência que se vertia sobre as cortinas do tempo. Os heróis estavam à venda. Tinham perdido pergaminhos, as novas gerações afogadas na bruma da desmemória, indiferentes às sucessivas marés da História.

Os curadores da memória protestavam. Tentavam evitar a venda dos heróis. Temiam que a sepultura da nação fosse cavada mal fossem preteridos os heróis, como se a História passasse a ser orquestrada por uma imensa página em branco – a futura bandeira, o hino envenenado pelos estilhaços do esquecimento.

Em oposição, negligentes, mas capacitados da sua persuasão, os promotores da venda dos heróis dirigiam o olhar para o porvir. Eram contra os relógios parados no tempo. Os heróis pretéritos estavam mortos e não deviam continuar a merecer as genuflexões contributivas dos cidadãos, num gesto imperativo que fabricava feriados e forjava comendas tão incandescentes como espúrias. Queriam que se fizesse ouvir a sua proclamação: este não era um atentado contra o património ido da nação, nem se pretendia diminuí-la, ou desmerecer o tal passado que é cimento de uma identidade. Os patriotas de diferentes cepas podiam ficar sossegados.

Faltava saber se havia interessados em comprar os heróis postos em hasta pública. No habitual etnocentrismo de quem tem fartas culpas no passado colonial, foi ventilada a hipótese de países de recente independência capitalizarem os heróis em venda. Depressa se percebeu que o exercício estava condenado ao malogro. As proezas não aproveitavam à causa desses países – e a imagem do país que submeteu a leilão os seus heróis de antanho atravessava um dano, pois não é dos costumes abjurar um passado e manifestar a vontade em trespassar os seus heróis para lugar forasteiro. 

No fim do prazo, ninguém comprou os heróis em saldo. Os honrosos patriotas exultaram: não era mais um pedaço da História pátria ultrajado pelo pretendido esquecimento dos heróis. Estes continuaram indiferentes à polémica, sossegados a fazer húmus nos respetivos túmulos. Do lado de fora, várias embaixadas receberam instruções para não ampliarem o noticiado. Não fossem os seus idiossincráticos heróis subjugados pela mercantilização do esquecimento.

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