31.10.22

Encomenda

The Fat White Family, “It Is Raining in Your Mouth” (live at Coventry Cathedral Ruins), in https://www.youtube.com/watch?v=60-ECYLD79U

As horas abrem-se sobre as portas, esperam pela luz inaugural. Pintam os alpendres que tomam posição perante a alvorada. Dizem que o chão treme sob os pés das almas consentidas. Os vultos que se assenhoreiam do adro ditam o arfar do relógio. Não são tiranetes. Receberam a incumbência de arrotear o caminho válido por onde os demais vão seguir. Cabe-lhes saber se vão a seguir.

Dantes, a penumbra era verosímil. Caía como uma cortina que encerra o palco. Sentia-se ao longe a maresia. A casa, longínqua, debatia-se com o Inverno tumultuoso. Era uma luta desigual. Ninguém desistia de ser amanhã. O Inverno podia esperar na sua demora: as pessoas sabiam que esse era o magma que as trazia de atalaia; ninguém se acomoda se não houver sobressaltos estimados como verbos condutores. 

Ao menos, os vidros da casa eram a costura da fortaleza. Por isso, as casas eram inestimáveis. Razão tinham os agiotas fracassados: as casas deviam ser mais dispendiosas, pela proteção que as pessoas encontram quando têm nelas paradeiro. Mas ninguém cuidava do cuidado das casas. Enquanto refúgio contra o Inverno iracundo, estavam expostas às tempestades, ao gasto operado pelo frio cortante, à neve demorada que vagarosamente corroía as suas fundações. 

As pessoas não esperavam pela medida larga do futuro, lá onde as casas sucumbem como estilhaços às conspirações que demoram a vingar e a ferrugem sobe metalicamente à boca. As pessoas preferiam emudecer perante a nostalgia do presente. Viviam aprisionadas ao presente, como matéria fungível entre as dedadas lacradas por deuses intemporais. Não podiam ser censuradas. Se tivessem cicatrizes, eram da mesma perenidade de tatuagens. Sem o dizerem, acreditavam nas casas intemporais. Não diziam o mesmo de si mesmas, mesmo que soubessem que as pessoas, como cimento da espécie, são da mesma imorredoira matéria que as casas.

Antes que a noite retaliasse contra o dia consecutivo, arrumava-se o suor despendido na angariação do dia. As pessoas não tinham medo de encenar os oxalás que fossem precisos. Mesmo que a tempestade não se anunciasse e os corpos fossem trespassados pelo medo, haveria sempre uma casa como refúgio.

28.10.22

Liberdade de opressão (alguém anda a falar por mim, por nós)

Jóhann Jóhannsson, “A Game of Croquet”, in https://www.youtube.com/watch?v=H6f6tC83XVg

Liberdade condicional. Como um prato que é servido requentado, que perde qualidades. Ou o divórcio entre o solenemente proclamado, que se torna uma entediante teoria, e a prática aprendida pelos olhos que colhem os espinhos da realidade.

Sim, liberdade condicionada: porque os poderes a ela nos condenam, mercê das exceções que caem a rodos sobre o santuário onde a liberdade se frui, legítima e genuína. Todos esses alçapões tornam mirífico o santuário da liberdade. Dizem os que nos tutelam: sim, liberdade (sem o açaime dos adjetivos que a limitem). Mas não resistem à tentação de a limitar. Sempre em nome de exceções, ou de dilações, que impedem – assim o encenam – a liberdade de ser genuinamente legítima. 

Liberdade de opressão, portanto. A cada limitação que a subjuga a outras prioridades, transfigura-se. Deixa de ser a liberdade que não devia aceitar nenhuma palavra como sua consorte. A liberdade quer-se livre de outros apodos, quer-se solteira. Sempre que alguém força a liberdade a um matrimónio de conveniência, começa a sua corrupção. Os súbditos, condenados a abdicar da rebeldia benigna, amesquinham-se na passividade em que são instruídos. A passividade confunde-se com uma obediência acrítica a quem determina a medida da liberdade. Quando a liberdade tem tamanhos e varia consoante as circunstâncias e o humor dos seus tutores, é uma liberdade condenada à decadência. Uma liberdade em opressão.

Os representantes têm predileção para falarem em meu nome, no nosso nome. Gozam da proteção do formalismo: se são os representantes eleitos, podem e devem falar em nome dos representados. Depressa tomam posse das generalizações. Ao usarem a fórmula “os portugueses”, exercitam uma mal contida vaidade – afinal, se assim falam e é no uso dessa condição, é porque uma maioria neles delegou a representação. Raramente se conseguem desprender desse pretensiosismo. Quando se apresentam como porta-vozes dos “portugueses”, abarcam todos sob a sua asa, como se não houvesse, entre os “portugueses”, quem não se reveja no que estão a dizer em seu nome. 

Um quinhão de árvores não faz a floresta inteira, por maior que seja essa parcela. O sufrágio a favor dos regentes parece torná-los insindicáveis. São usurários de um poder que lhes foi delegado. Não é um poder intransitório, nem um poder que não se sujeita a limitações. Sob pena de não se poder falar de liberdade sem a adstringência de outros termos, mas apenas de uma liberdade que é o objeto vívido de uma opressão. Uma opressão que se esconde na rarefação da liberdade. 

Os oxímoros não deixam de o ser por força de decreto, ou por autorrecreação dos regentes.

27.10.22

Fora de jogo

dEUS, “Instant Street” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=9yel4INWfWA

Não contes nada. Não faças de conta que os que estão lá fora são piedosos. Não finjas que o mundo não paga para ver o ridículo matar o mais próximo. Não sejas da mesma fibra do mundo. Não me leves a jogo. A esse jogo.

Devia saber que não configuro uma pertença. Devias saber o mesmo. Se forem forjadas alianças espúrias – porque, dizes, há oportunidades que se escondem atrás de ausências – adultera-se o sangue que incendeia as veias. Talvez o sangue se aplaque. Talvez passe a ser sangue domado, descontaminado. Será a exposição aos demais que admite a moderação dos sonhos. 

Não estou convencido. Mais me parece que as pessoas continuam a não ser credoras de confiança. Pois elas insinuam-se e são as primeiras a deixar um punhal que friamente trespassa a carne. Os trunfos levados a jogo são escassos e de nulo efeito. Antes assim. Digo que um trunfo é um expediente que reserva as fragilidades para os biombos que as escondem. É onde se oferecem os ardilosos. Eu continuo a não aprender e teimo em distanciar-me do fingimento. 

Trazes-me a jogo. Mesmo sabendo que não estou convencido da bondade do tabuleiro onde ele se joga, da lisura de quem nele terça armas, quase sempre desleais. Se os cânones não estivessem sujeitos à vontade avulsa de quem os convoca, talvez houvesse serventia no jogo. Mas as condutas são de uma cidade onde os mandantes esculpem os cânones a seu bel-prazer. Não podemos confiar. Somos meros peões à mercê do arbítrio. Não é a palavra que se valida na antítese deste lugar e dos seus generais. 

Por isso, situo-me fora de jogo. Ou além do jogo, como se houvesse, nos interstícios das falas, um patamar escondido onde só habitam os que de sua vontade fizeram exílio. Ficar fora de jogo não é uma fuga entretecida no gelo insincero da hipocrisia. É um endereço para os que se evadem da matéria invalidada pela espada arbitrária que se abate sobre os inocentes. Sobre os inocentes que são feitos vítimas à mercê dos generais sem escrúpulos, dos que chamam a si a faca maior e partem, a seu favor e dos que pertencem ao séquito, a fatia maior.

26.10.22

O vagabundo não gosta de lagosta

Nitin Sawhney, “Movement”, in https://www.youtube.com/watch?v=-HDq3BtApnA

O vagabundo não gosta de lagosta. Perguntaram-lhe como podia saber se gostava de lagosta, ao que o vagabundo exclamou, como aquele ar de quem faz dele louco (e ele sabia que não era), “então como sei? Pois se já provei lagosta!”

Os especuladores, que adoram ser arquitetos de estórias em que os outros são os atores, entretinham-se a adivinhar onde tinha o vagabundo experimentado lagosta. Uns alvitravam que o vagabundo fora, noutros tempos, pessoa bem-posta na vida, um burguês que esbarrou na decadência. Nos seus tempos de burguesia, degustou lagosta. Essa experiência foi a base para a revelação do seu (não) gosto. Outros, mais preconceituosos, não acreditavam que o vagabundo tivesse comido lagosta num restaurante, nem acreditavam que tivesse tutelado uma vida desafogada. Levantavam a hipótese de ter encontrado os restos de uma lagosta no lixo e de a ter provado assim mesmo. Para concluírem: pudera, a lagosta estava no lixo, o que está no lixo não pode ser uma boa experiência gastronómica (objetavam os da confraria da lagosta).

Ninguém perguntou ao vagabundo enquanto se entretinham com hipóteses espúrias, sem darem conta que era do vagabundo que se serviam para o festim de especulações. Um deles ainda pensou se não era caso para travarem o exercício a fundo por causa da proteção de dados pessoais. Sussurrou ao amigo do lado, que devolveu o remoque: “meu caro, isto é caso para muito mais; é caso para se chamar a Constituição, é um direito de personalidade vilipendiado.”

Os dois saíram, à francesa. Não queriam continuar a ser parte do exercício soez a que os outros se dedicavam. Agora já tinham empurrado as adivinhações para o estado mental do vagabundo. E ele, mesmo à ilharga, a ouvir tudo e mais alguma coisa, imperturbável. A imperturbabilidade incomodava os bem-postos burgueses que continuavam a bolçar disparates. “O homem é surdo”, disparou um deles, em hipótese de adiantada decadência interior. 

O vagabundo levantou-se, na solene pose de indiferença de que não abdicou. Dirigiu-se à ponte grande que atravessava o rio. Estugou o passo e, entoando uma musiqueta qualquer, ininteligível a música, foi ao bornal com os seus haveres e tirou uma máquina de aparar cabelo. Enquanto cantava a plenos pulmões, a voz a atirar para o desafinado, a mão direita deu corda à máquina de aparar cabelo e dirigiu-a à cabeleira abundante e deslavada, irrompendo cabelo fora, sem hesitações. Jurou que antes de atravessar o rio a calvície estaria instalada. Antes isso do que revelar como descobriu por que não apreciava lagosta.

Malditos sejam os pequenos burgueses, armados em filhos de autênticas, mas bem disfarçadas, meretrizes – rematou, assim que a ponte já não era sobranceira ao rio e olhou para trás, para ver as melenas arbitrariamente distribuídas pelo passeio da ponte.

25.10.22

As mãos suadas

The Cure, “And Nothing Is Forever”, in https://www.youtube.com/watch?v=9qh-1-Bo4bk

As mãos pertenciam ao particípio passado, como se tivessem sido esvaziadas por umas luvas de formol. Os lugares ermos não eram pródigos em oxigénio; mal se conseguia respirar. E, todavia, as mãos suavam abundantemente, e estava frio.

As vozes falavam de suores frios. De boca em boca, corria o boato que as mãos suavam e nem sequer estava calor. Não era um rumor. As mãos atravessadas na lotaria do futuro respondiam com o medo próprio de quem nada sabe. Dizia-se que o suor era a caução do medo.

Às vezes, pressentiam-se os corredores apertados do labirinto por onde se encavalitavam fantasmas e rostos bondosos. Era uma fusão de personagens díspares. Não havia vozes levantadas. Nem protestos. Os contrários passavam uns pelos outros sem se sublevarem numa beligerância que, de outro modo, parecia incandescente. Uns e outros escondiam as mãos suadas; escondiam o que podia apimentar a beligerância. Aprenderam a conviver sem darem parte da hostilidade. Não eram próximos uns dos outros. Limitavam-se a uma tolerância recíproca. Atendendo às más credenciais da espécie, era um avanço que ninguém menosprezava.

Os que ousaram romper a paz todavia podre caíram em desgraça. Sobre eles abateu-se uma torrente imparável de mãos suadas. Levados pela enxurrada, acabaram condenados à irrelevância por todos, até os seus pares. Os mais empenhados sabiam que o equilíbrio era frágil e que fora difícil cimentá-lo. O museu dos horrores não dispensava um capítulo sobre os episódios em que as armas falaram mais alto do que as vozes das pessoas. Para avivar memórias adormecidas.

Ainda sobrava alguma lucidez entre a desesperança geral. Os braços não se levantavam ao menor esboço do fermento da violência. Sucumbiam ao peso das mãos suadas. Capitulavam perante a paz que se adestrava, inescrupulosa. Os espíritos federados sabiam das diferenças. E sabiam que as diferenças não podiam ser a besta apontada contra os olhos esmorecidos. As diferenças eram a enseada onde a paz se refugiava. 

Na praça central, um monumento foi levantado em homenagem ao centenário de duradoura paz. Um par de mãos em pose de contemplação, como se o horizonte fosse um mar de possibilidades e todas amputassem a dilaceração das almas. Sobre as mãos, uma água constante, furtiva. Como metáfora das mãos sempre suadas.

24.10.22

Transverso

Dry Cleaning, “Don’t Press Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=4pJ377GGIGA

Era capaz de jurar que o rapaz tinha acabado de assaltar um punhado de almas, as que estavam tresmalhadas no púlpito das árvores não acossadas pelo Outono. Sem esporas, como se fosse um cavaleiro atirado à sorte, golpeava o pensamento fundo das almas à mercê (como se faz às castanhas antes da assadura), mas delas não se alimentava. Era por diversão – havia alguém que, estarrecido pelo despudor, diria tratar-se de vandalismo puro. O rapaz, de olhos escancarados, seguia pela rua fora como se mais ninguém houvesse, indiferente ao demais, mergulhado sobre os seus fantasmas. Tantas almas rapinadas, não podia esperar se não ficar povoado pelos fantasmas expropriados.

Não era por causa da propriedade privada que a nova ponte do metro não podia ser construída. Fossem feitas as expropriações em cabimento e os terrenos ficavam desimpedidos para o xisto onde assenta o progresso. A comandita de figurões que desfilou na cerimónia de inauguração da inauguração das intenções da obra passeava a pança ensoberbada – não é para qualquer um deixar o seu nome para memória futura de uma nação, saiba ela dedicar-lhes as devidas genuflexões. Se ao menos houvesse um que, demencial, furasse as diligências do mestre de cerimónias e berrasse, com a força dos pulmões cheios de loucura, oxalá voltássemos a ser arcaicos outra vez (antes de ser afastado por um safanão decidido de um gorila de suas excelências). Mas a obediência é critério da sobrevivência.

Em todo o caso, o ginásio estava meio cheio. Alguns habitués das anfetaminas povoavam os espelhos, posando os músculos que andam nos andaimes da preparação física. Se um cronómetro se dedicasse ao criterioso compulsar do envaidecimento marinado pelo espelho, a balança penderia a favor (ou seria melhor dizer: a desfavor?) do exercício de toda aquela musculatura. Menos mal. Imagine-se a ausência de ufanismo dos seguranças de ministros, de portas de discotecas e de bares de alterne, e de outros mercenários a soldo de qualquer um, e a montanha disforme de musculatura que para ali não iria.

No cruzamento, enquanto o semáforo estava vermelho, a rapariga esguia entretinha os condutores com acrobacias diversas acompanhadas de uns bastões coloridos. Era tão esguia que parecia não ter músculos. Os condutores só queriam que o semáforo deixasse de ser uma inconveniência. Mal deram conta da rapariga. O país anda tão desatento às artes. Se ao menos os cidadãos tivessem absorvido, cada um, trezentas almas de gente existente, falecida e nascitura, como o rapaz involuntário possuído por umas trezentas almas metodicamente furtadas, as artes seriam creditadas com o valor que merecem.

A noite deitou-se no manicómio e no resto da cidade e não há notícia que o rapaz que varreu tresloucadamente as ruas tenha encontrado repouso numa cama do estabelecimento. Alguém disse, em perfeito murmúrio, que uma grada figura do regime, senador reconhecido, foi visto nas imediações. Não se soube se foi por acaso ou se era prelúdio de uma estadia no manicómio. 

Podia ser que houvesse alguma esperança para a pátria tão descoroçoada (e os caroços são a alma carnuda da fruta).

21.10.22

Resgate (3)

Tindersticks, “Friday Night”, in https://www.youtube.com/watch?v=iElxvQzygCU

Não deixes que as sombras embaciem a pele. Às coisas destemidas, não se vira o rosto. Não é o sargaço que recolhes da maré. É a herança que sobra depois de o lugar ficar ermo e só se saber dos despojos quando eles ocuparem o silêncio. 

Remedeia os haveres perdidos: se não te deres às contingências, não terás lição para as superar. É assim que apanhas os vultos distraídos. Aproveita o vento a favor. Aproveita para deduzir as culpas não formadas, enquanto lá fora se diz que é tarde. Dir-te-ão que estás sitiado. Que é inato à nossa condição. E que devemos uma capitulação, sentados em cima da inércia que nos poupa ao dano. Pelo menos, é assim que querem os regentes ensoberbados. Os que se cobrem de vaidade ao saberem que estão investidos dos poderes máximos que permitem exercer o poder sobre os demais. Estes, lamentáveis, condutores de almas.

Tens uma forma de resgate mesmo á mão. Ou várias. Aqui só importa avivar a memória de uma delas. Torna-te gigante por dentro da tua pequenez. Finge que és uma farsa. Ninguém te apanha, desse modo. É importante que não te iludas: ocupas um lugar irrelevante no teatro onde se engenham as coisas. Dirás que nunca tiveste a ambição de subir a escada, nunca quiseste fazer parte da putativa elite dos “notáveis”.

Pedes: se alguma vez estiver a um singelo passo de ser alistado nos notáveis, apaga o meu nome do inventário das existências. Não me deixes ocupar a soberba correspondente à notoriedade. Não me deixes perder tempo com as coisas frívolas. Se perder a noção da minha posição, é teu imperativo ditar o resgate. Nunca dele se dirá que foi contra minha vontade, que para me resgatares é preciso que a minha vontade esteja inanimada. Confiro-te esses poderes de latitude larga. Tornas-te, aqui e por esta forma, meu máximo procurador.

E se mesmo assim me debater, com o respaldo da aparente ilusão de ascender a um lugar centrípeto, atalha o grande mal com o remédio máximo: duas pauladas na moleirinha, seguidas de banho retemperador e da proverbial justificação da supressão da vontade, em voz devidamente elevada. Às vezes, são precisos mil fermentos para alijar os fantasmas que urdem conspirações. 

Saberei que não esperas gratificação. Sabes que faria outro tanto por ti, ou em teu nome.

20.10.22

Campeonato do mundo de piratas informáticos

Yard Act, “Fixer Upper” (live Reading Festival 2021), in https://www.youtube.com/watch?v=2Q9OcluSnnM

O concorrente da Lituânia bebia sossegadamente o café enquanto os dedos deslizavam o ecrã do telemóvel. Queria saber como iam os seus investimentos em cripto moedas. A concorrente da Irlanda, que não escondia o encantamento com o concorrente das Filipinas (ela sempre teve queda para homens e mulheres exóticos) chamou a atenção do concorrente da Lituânia que estava atrasado para o seu slot. O rapaz estremeceu e, desastrado como são os piratas informáticos (um bando de totós), deixou cair o telemóvel que se esfrangalhou no chão de mármore do lobby do hotel.

O concorrente da Argentina parecia um zombie. O concorrente de Madagáscar segredou, a uma audiência composta pelos concorrentes da Mongólia, da Noruega e da Venezuela, que o concorrente da Argentina saiu em ombros do bar na noite anterior, à custa de tantos shots seguidos. A concorrente da Venezuela saiu do grupo para atender o telemóvel. Pelo secretismo, dir-se-ia tratar-se de uma encomenda dos serviços secretos venezuelanos (se ela não fosse uma contra espiã a soldo dos “americanos”.)

Não havia concorrentes “americanos” registados no certame. Que não se retirasse a conclusão que não há piratas informáticos nos Estados Unidos, ou que eles são tão fracos que ficam à mercê dos colegas de outros países que são pagos a peso de ouro para invadirem as redes sensíveis do país, desmentindo-o como país mais poderoso do mundo. 

Corriam versões diferentes da cumplicidade dos piratas informáticos com as autoridades dos países. Em voz própria, todos negavam a ligação. Queriam que deles soubessem ser hasteada a bandeira da independência. Eram – ou queriam ser vistos como – lobos isolados, corriam por conta própria e só respondiam perante a rebeldia que lhes corre no sangue. Todos os piratas informáticos apresentavam credenciais que os afastavam da tutela dos respetivos governos (até nas ditaduras, nos regimes autocráticos, nas cleptocracias, nas oclocracias e nas kakistocracias). Quando os microfones e as câmaras que filmavam o evento estavam desligados, os piratas informáticos admitiam que estavam a soldo dos serviços secretos de um ou mais países, ou de sabotadores natos. Muitas vezes, fazendo jogo duplo: eram atores de invasões informáticas só para serem contratados pelo país visado para resolverem o crime.

Falta dizer que a concorrente indiana se sagrou campeã mundial dos piratas informáticos. Ninguém a viu sob o véu plúmbeo que quase cobria o rosto na totalidade. Um dos jornalistas destacados para o campeonato concluiu, depois de três dias de acompanhamento das atividades de hacking, que os piratas informáticos reduzem os serviços secretos à insignificância, se quiserem. Um ingénuo esteta dos sentimentos humanos, que se alistou como voluntário para ajudar a organização, sugeriu que os piratas informáticos deviam receber instrução sobre cidadania e assuntos afins. A prazo – recomendou, sem dar conta da sua cândida ideia – devia ser assinado um código de conduta para regulamentar a atividade dos piratas informáticos. Os ditos cujos responderam ao repto, anunciando, sardonicamente, a criação do sindicato mundial dos piratas informáticos. 

O dia seguinte, esse, começou pela noite.

19.10.22

Fugitivo

GOAT, “Under No Nation (Radio Edit)”, in https://www.youtube.com/watch?v=09lBzrAI3b8

Revisão da matéria dada. Em cada artéria a cidade revê-se nos olhos que são sua matéria avulsa. Possivelmente todos são forasteiros: nas ruas sucessivas, os rostos são todos desconhecidos. Mas talvez eu seja o fugitivo, exilado sem saber, preso dentro da fortaleza em que se tornou a cidade. Talvez seja eu, perenemente no estuário de um ermo lugar sem nome no mapa. 

A parede do quarto recebe um papel amarelado que funciona como mnemónica. A cada dia vou inscrevendo uma jura, um ensejo, um punhado de palavras que podia ser um poema se fosse poeta, uma pessoa a quem não posso deixar de falar, uma incumbência inadiável, o mosto fresco que se abraça à manhã madrigal. Trago um sangue evasivo que se furta à memória. Antes que seja consumido pela desmemória, aprisiono-me às ameias do papel amarelado que serve de moldura aos dias consecutivos.

Tenho medo que o esquecimento destas mnemónicas consuma o dia em ausência.

Não me importa ser fugitivo por dentro do próprio corpo. Os figurinos estão repletos de corpos que parecem a perfeição desenhada ao milímetro em estiradores manobrados por gente impecavelmente esterilizada. Escondem os rostos atrás de uma máscara que não se distingue como máscara. Atirado o véu para as lonjuras, as figuras todas (figurantes e seus mentores) mostram as credenciais luciferinas. Daqui também se foge. A desconfiança metódica da perfeição é redentora.

O caudal emagrecido sublinha o estio prolongado, transfigura o atlas das paisagens. Alguém disse que parece o norte de África, tamanha a aridez que redesenhou os campos e os montes e as linhas de água, impondo o seu silêncio fúnebre. Cadáveres de animais acompanham o caudal quase inerte. O morticínio, por causas naturais. O que não esconde a feição de uma guerra de nós contra a natureza (ou de nós contra nós próprios, o alçapão de uma autofagia repetida). Há teimosos fugitivos que viram o rosto para o lado contrário quando a devastação entra pelos olhos dentro.

O lado desembaciado é difícil de encontrar. Dir-se-ia, o ponto de fuga ambicionado, contra as lantejoulas decadentes que insistem em enfeitar os tempos que assim soam a arcaísmo. Estamos condenados a fugas interiores. Como se houvesse um lado escondido que mais ninguém conhece, que nos alberga quando queremos ser fugitivos. 

18.10.22

Um má notícia sobre uma má notícia é uma boa notícia

Sorry, “Let the Lights On”, in https://www.youtube.com/watch?v=rNaBYq1-Tqs

Sobre a arqueologia de uma má notícia: às vezes, é só mudar a predisposição do olhar, aplanar preconceitos e usar a figura de estilo dos contrafogos para reduzir uma má notícia ao seu contrário. Por exemplo: o que seria considerado uma má notícia dá à costa; antes que ela contamine o sangue com os vultos associados e os labirintos sem porta de saída, ateia-se um fogo contra a combustão exercida pela má notícia. E fica-se à espera. À espera que o fogo ateado, ao esbarrar contra o fogo causado pela má notícia, consuma o oxigénio que é o rastilho desta.

Para lidar com uma má notícia não se exige apenas flexibilidade mental. É preciso usar uma hermenêutica que, sem fazer concessões à prestidigitação que apenas finge a inexistência da má notícia, lance sobre esta um anátema. Pode-se duvidar que os efeitos da má notícia sejam devastadores. Pode-se questionar o seu emissário: se a reputação for equacionada, é a própria má notícia que fica em causa. Pode-se usar o método da relativização: sem esconder que a má notícia o é, os seus efeitos são rasurados ao levantar a hipótese de outra notícia, possivelmente mais devastadora, poder ter dado à costa em vez da má notícia por que se sofre. 

As más notícias também se expõem a uma epistemologia. A alienação é o método mais capaz de obliterar uma má notícia. Os que se dedicam à pureza da realidade que é servida ao olhar não inquisitivo dirão tratar-se de um método sem asas para voar. Insurgem-se contra a alienação, por a julgarem uma artificial cortina de fumo que apenas finge que as más notícias nem sequer aconteceram. 

Todavia, quem decide sobre a admissão da alienação é o próprio que lhe dá caução. Ele pode, por exemplo, denegrir a má notícia, corrompendo os seus efeitos nocivos. Pode fazer o papel de agente conspirador, que procura desvalorizar uma má notícia ao atirar sobre ela outra má notícia. Esperando, sob o efeito da matemática, que dois números de sinal negativo se tornem num número positivo: ou, uma notícia má vertida sobre uma má notícia tem de ser uma boa notícia, se a má notícia afetada pela má notícia que sobre ela se deita for anulada.

E assim fica provado que há más notícias que são boas notícias.

17.10.22

O super-homem foi tirar sangue e desmaiou

Sharon Van Etten, “Never Gonna Change”, in https://www.youtube.com/watch?v=V2Af30WFYQM

Era inadmissível: escolheram a hora em que o super-homem foi ao laboratório de análises tirar sangue e atacaram uma galeria de arte onde estão expostos quadros de um polémico pintor. Dois dos quadros ficaram inutilizados. É uma perda incalculável. Só é maior a perda que sofreu a liberdade de expressão, tão vilmente atacada por um punhado de estúrdios que se dizem testas-de-ferro da “democracia verdadeira”.

O super-homem ainda foi chamado para ir à galeria de arte e terminar a baderna instalada. Nesse momento, desfaleceu ao espreitar a agulha a espetar a veia. O super-homem não aguentou a imagem da agulha sedenta do seu sangue a perfurar a veia e a beijar, enfim, o sangue tão precioso. Desfaleceu no ato, sem possibilidade de o trazer ao conhecimento a tempo de expulsar os meliantes que ocupavam a galeria de arte.

Em correspondência com as capacidades sobre-humanas, o super-homem era capaz de narrar com detalhe o que colonizou o pensamento durante o desfalecimento. Até nesta capacidade o super-homem se distinguia do comum dos mortais. Eram imagens que se atropelavam umas às outras, um rodopio de lugares e pessoas e palavras sobrepostas, como se o idioma deixasse de fazer sentido. Uma mistura de paisagens atuais e pretéritas fundidas num mesmo cenário, pondo em conversa personagens vivas com outras que já tinham passado pelo crivo do funeral. 

Durante o desfalecimento, o super-homem ouviu um sussurro da bondade. Figura mítica, que se o não fosse talvez dispensasse a existência do super-homem, revelou-se na pessoa da enfermeira que tinha espetado a agulha na veia do super-homem. Inebriado pela bondade, o super-homem demorou a retomar o conhecimento. Uns apostaram que o super-homem estava cansado de combater as fontes de maldade que enxameiam o mundo, enamorando-se da espiritualidade contagiante da bondade. Outros discordaram e, adeptos de teorias da conspiração, especularam que a bondade, apoderada da figura da enfermeira, espetou a agulha de forma tão veemente que o super-homem ficou anestesiado.  

Afinal, o super-homem foi denunciado. Ninguém o conhecia de viva pessoa, que sem a indumentária que o identificava era (como manda o mito) um de nós. Foi ele, ao saber do desfalecimento e ao recuperar o acontecido, que admitiu já não ter condições para continuar a ser o super-homem. 

No dia seguinte, apresentou a demissão ao ministro da tutela. O super-homem não pode ter fragilidades intrínsecas ao homem comum. 

14.10.22

Nadar de costas (short stories #410)

Joe Jackson, “Steppin’ Out”, in https://www.youtube.com/watch?v=PJwt2dxx9yg

          O papel de parede não mentia. A desmoda era a moda da casa. Era como nadar de costas, e porque as costas não tinham olhos era sempre nadar ao acaso, antes que a nuca esbarrasse no proémio da piscina. Se a nuca não vê, como podem as mãos esculpir um aplauso a uma estética dissidente? Era preciso medir os termos da questão, em sentido próprio: a formatação dominante ensina a subjetividade da estética. Quem podia censurar o papel de parede? Ainda houve quem protestasse: não é aquele papel de parede que desautoriza a estética, é cobrir as paredes com um (qualquer) papel de parede. A discussão continuava aprisionada à subjetividade da estética. Quem escolhe forrar as paredes de casa com papel de parede está convencido que as paredes, como o interior da casa, não têm de estar à mostra. É uma metáfora da privacidade que deve ser um ademane. Os nórdicos não compreenderiam a peleja, tratando-a como uma frivolidade. Mas os nórdicos não usam sequer cortinas, deixando as suas casas à mostra de quem as inspeciona desde o exterior; do menos se dirá da sua preocupação em ocultar as paredes através de um tratado que as protege com papel de parede. Cada um escolhe a matriz que enforma as braçadas dentro de água. Uns saberão gostar apenas de nadar quando os olhos sabem o rumo a levar. Outros não se importarão de nadar de costas. Não terão medo dos obstáculos que podem aparecer no caudal. Os proveitos serão estimados no inventário que se estabelece no fim do período. Provavelmente, o arsenal de certezas fica reduzido a estilhaços depois de escrutinadas as paredes das casas. Haverá que nomear um julgador à prova de inclinações estéticas. Alguém com a imparcialidade de quem ousa nadar de costas.

13.10.22

Irrepetível (pedras sem sola)

 

Max Richter, “Haunted Ocean (Exiles Version), in https://www.youtube.com/watch?v=iIbWd19VEgc

Teríamos a ponte pênsil como reparação da carne viva. As nuvens estão a favor e o vento pressente falas madrigais. Em vez do sobressalto, a carne saneada abre mão dos artifícios que embalam quimeras sem provimento. Levantamos o cálice às paisagens por demandar, como se fosse a jura que as contempla nas imediações do tempo vindouro. Aceitamos o sangue sem dolo.

As madrugadas passeiam no umbral da matéria sem nome. Delas se entoavam os piores pregões, as madrugadas entendidas como o furto inominável dos pesadelos. É esse o cais de onde acertamos as juras alinhadas com o tempo futuro. Não transigimos no verbo imperativo do presente. Sabemos que não há melhor definição para o irrepetível. Aprovamos o conceito como o alicerce que nos amarra a um sentido.

Se fossemos reféns da transcendência, cozíamos as mãos às paredes onde se instruem mitos arcanos. Preferimos a transfiguração dos lugares que se opera através da nossa presença. Sabemos: um lugar não volta a ser o mesmo depois de ter sido escrutinado pelos nossos olhos diligentes. As paisagens ganham novos limites. As cidades transpiram um suor como se fosse bênção. Parece que os idiomas passam a ser inteligíveis e os rostos forasteiros não deixam de ser forasteiros, muito embora neles se aprecie uma familiaridade que não encontra explicação.

Já somos de uma cepa que habilita a medir os momentos que levitam na sua irrepetível condição. Encarnamos essa paradoxal perenidade à medida que sentimos o relógio do tempo centrípeto a andar para trás. Não nos dissuade a participação da efemeridade. É o contrário: a efemeridade educa um certo sentido de perenidade que se prolonga na consagração dos lugares irrepetíveis, das pessoas que não voltam a coincidir no mesmo lugar, das palavras que não voltam a ser ditas, dos dias que só têm uma oportunidade no atlas do tempo. 

Temos a noção do irrepetível. Às vezes, fracassamos: o irrepetível é desmentido pelo seu oposto, mas não nos demovemos pela traição às probabilidades tecidas no cenáculo de onde apreciamos a andadura do mundo. O que se torna irrepetível demora-se na memória, como numa montanha que compreende várias camadas que se gastam, umas atrás das outras, para nossa serventia. Não é pelo passado que olhamos as cicatrizes que pesam. Deixamo-las à sua errância, a elas e ao tempo pretérito, nós, viciados na inventário do irrepetível. E sabemos que não há melhor fortuna.

12.10.22

O governo já sabe que no próximo ano vamos pagar treze milhões de euros de multas por excesso de velocidade (ou: oráculos magistrais)

LCD Soundsystem, “Tonite”, in https://www.youtube.com/watch?v=lqq3BtGrpU8

Dizem os entendidos que as previsões económicas são do domínio do esotérico. Outros alegam fazer uma rasante ao metafísico. A blague sobre dois economistas que têm capacidade para alinhavar três previsões e todas se revelam erradas circula no meio (e fora dele), aproximando a economia da meteorologia (quando os meteorologistas se enganam, para desprazer da populaça que os acompanha), ou, para visões mais céticas, da astrologia. 

A ciência da divinação ocupa páginas do orçamento de Estado. O orçamento baseia-se nas previsões económicas mais reputadas, contendo previsões de receita e de despesa. É compreensível que estejam previstos os gastos: grande parte tem regularidade, obedecendo a um padrão que lança âncora na tendência herdada de anos anteriores. Já quanto a prever receitas (de impostos e de multas), a conversa é diferente: muitos dependem de acontecimentos imprevisíveis, irregulares, ou sujeitos a circunstâncias que escapam à tutela do governo (por mais que ele se atribua um capacidade de deificação ímpar). 

Para o próximo ano, o governo vai instalar radares de última geração nas autoestradas e nas estradas. Devem ser exímios caçadores do excesso de velocidade, a crer na previsão de receita cobrada através das cominações de desatentos, distraídos, ou puramente infratores. O orçamento manda dizer: treze milhões de euros – treze. Dirão os especialistas na matéria: este número não é ao acaso, fundamenta-se nas tendências dos anos anteriores, com atualização esperada do instrumento tecnologicamente evoluído com capacidade para executar uma perseguição diligente aos infratores que teimem em queimar os limites da velocidade.

(Faz lembrar outra manifestação sublime do autoritarismo mal disfarçado de engenharia social de cariz socialista: há dias, à entrada de uma grande superfície comercial, situei-me perante uma placa com o horário de abertura, com a advertência, em letras garrafais, que o horário resulta da “imposição” do decreto-lei número tantos-de-tal. Por imposição: que é o mesmo que admitir pura imposição, na exibição do longo e tentacular braço da lei, em ostensivo alardear da autoridade das autoridades competentes. Bravo, o socialismo este.)

Para o fim sobram umas interrogações: e se os condutores, assustados com o número – treze-milhões-treze, uma renda inteira! – mudarem o comportamento e passarem a respeitar os limites da velocidade, o que será feito dos treze milhões de euros previstos? Estará o zeloso governo na disposição de destapar ali o cobertor para tapar aqui uma fenda que ficou aberta, para não prejudicar as previsões orçamentais (e para as contas públicas, malgré Sampaio, continuarem a bater certo)? Ou o governo vai ordenar aos militantes do partido, ao bom e bem-mandado séquito, que, à vez e em obediência a um cronograma detalhado, se façam à estrada em velocidade alucinante, só para se cumprir a arrecadação dos treze-milhões-treze de euros?

(A coima seria reembolsada pelas generosas finanças do partido. Ou seja, no fim das contas, a entrada e a saída seria a mesma: o habitual sacrificado.)

Houvesse sensibilidade para estes assuntos, o que inclui a capacidade provocatória do cidadão que não quadra com a argamassa da maioria, e o conhecimento da previsão dos treze milhões de euros cobrados após o escrutínio meticuloso dos radares com tecnologia de ponta, e não se poderia imaginar incentivo melhor para mudarmos o comportamento ao volante. Passaríamos a respeitar as limites de velocidade, sem o menor desvio. Só para contrariar o dinheiro que o governo considera em caixa antes mesmo de o jogo ter começado.

Ah, bendito, bravo socialismo. O que seríamos sem a tua queda inata para o paternalismo, para a condução das almas sempre tresmalhadas?

11.10.22

Os rufias que não metiam medo

The Smiths, “The Headmaster Ritual” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=iZam2W2oYtE

Os cães ladram e ladram, sem chegarem a morder. A vozearia é de sobra para intimidar. Até que os que se habituaram a ter medo medem as probabilidades e pressentem que a intimidação não se traduz em dano tangível, em dano maior. Os cães até podem ladrar e ladrar, mas descobriu-se que não têm dentes e a carne que os desaconselha já teve dias melhores.

Mas uma fama inteira não se despromove sem meticulosa desconstrução. Os rufias são rufias e não será por acaso. Deixaram um rasto de medo, um resto de medo. Atrás deles vinham estórias de terror, com a violência esbracejada sobre quem aparecia no seu caminho. Não eram eles que se desviavam, que não conhecem caminhos alternativos às retas que desenham. Os outros, contratempos que exigiam afastamento, é que tinham de procurar outros caminhos. Não quisessem dar de caras com os rufias, para a integridade física não ser descasada.

Foi em cima da fama de rufias que os rufias medraram à conta de um mito da cidade. Eram uma casta a que só os despudorados e os que não conseguiam um lugar nas instituições à custa das suas capacidades (ou de especiais conhecimentos) pertenciam. Vangloriavam-se de o serem. Não lhes explicassem o significado da legalidade. O campo da ética não era de sua visitação. Foi em cima desta mitologia que foram narrados enredos vários e os rufias embestaram os pergaminhos do medo.

Houve um momento em que surgiu a hipótese de os rufias serem apenas uma onomatopeia. Começou o passa-a-palavra do cão que muito ladra e não chega a morder. As pessoas que estavam de fora da seita dos rufias começaram a perguntar umas às outras pelo paradeiro das vítimas: quem, entre eles, já tinha sido arregimentado para o medo pelo abocanhar doloroso dos rufias. Não havia inventário a registar. Nem havia, nos registos da polícia, rufias a serem visitantes dos cárceres por manifesta delinquência. 

Os rufias eram uma imagem vazia. Houve um dia em que todos perceberam que os rufias eram um mito, e que o medo deixava de ter um dicionário. Continuava a haver rufias, mas sem idioma por preencher. O medo evaporava-se na contrafação dos rufias.    

10.10.22

O que aprendias com o quilómetro quadrado

Andrew Bird, “Manifest” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=uDbJFF7H91M

O circuito fechado embaciava o que os olhos queriam ver. Protestavas. As cortinas não deviam descer sobre o olhar inquisitivo, esse era um nevoeiro dispensável. A pequenez já é sanha que chegue para amesquinhar as pessoas que desafazem os dias como se todos fossem sombras de si mesmos. O olhar pesaroso arqueia-se sobre elas, fá-las tombar sobre um peso bruto, intempestivo.

Alguém sussurrou que um quilómetro estava à disposição. Era um quilómetro quadrado. Feitas as medições, um quilómetro quadrado era um perímetro aceitável se fosse habitado por uma só alma. Não sabias o que esperar: tirando os lugares propositadamente ermos, a densidade populacional era uma extravagância para os sentidos, e pressentias, antes dos banhos de multidão, que o saldo se jogava a teu desfavor.

Não tinhas nada a perder: se a hipótese considerada fosse a pior de todas elas, seria um quilómetro quadrado sobrepovoado. As pessoas andariam acotoveladas e, se as coisas ainda tivessem a companhia das doenças que se contagiam à menor inspiração do ar alheio, a combinação dos fatores não era promissora. A morte seria sempre pior cenário. Já tinhas decidido não recuar. Avançaste pela rua de sentido único (pelo menos de acordo com o por ti convencionado). Não estava ninguém naquele quilómetro quadrado. O olhar perdia a noção do perímetro. O lugar era só para ti, durante uma hora (e o tempo estava a contar). 

Pouco tempo depois percebeste porque ninguém queria aquele quilómetro quadrado. Era um quilómetro quadrado, mas quadrado no sentido de atávico, o fiel da balança do tempo gasto pelo desamor que as pessoas tributaram àquela nesga de terreno. Havia pedregulhos insistentes com arestas fratricidas. Silvas a rodos, crescendo a caminho do céu. Nas partes descampadas, um mar de lama mostrava a linhagem carbonífera do subsolo. O ar era fétido. Sentiste um silvo repetitivo a brotar do meio do silvado; intuíste que era uma serpente, mas não sabias das suas intenções. 

Não haverias de recomendar aquele quilómetro quadrado, nem aos inimigos que não tens. Não quadrava com a tua progressista linhagem, o quilómetro tão quadrado. Sentiste que os vinte minutos em que por lá erraste eram literatura de horrores, como aqueles vultos sem nome que montam espaço nos pesadelos e teimam em não os desembaraçar.  

7.10.22

Pós-república (o novo busto)

LCD Soundsystem, “New Body Rhumba”, in https://www.youtube.com/watch?v=JG17jiPdbb0

Se ao menos a República – digo: a senhora que ao regime empresta o rosto e o busto – tivesse vivido em tempos de sensibilidade com os dados pessoais, não saberíamos do rosto e do busto que se emprestam como símbolos da república. A menos que a senhora tivesse assinado o consentimento e se acrescentasse outra exigência: que os súbditos também consentissem que a sensibilidade não é hostilizada por verem os seios nus da República.

Se a república nascesse hoje, que símbolos seriam sua representação? Ando há dias com esta interrogação a adejar o pensamento e do pensamento não consigo um esboço de resposta. Os símbolos são hasteados em função das contingências dos tempos, de representações que são os alicerces em que se cimenta uma pertença. E os tempos variam, como muda a matéria-prima do cimento das identidades.

Não sei se seria um homem a dar a cara pela república. Se dantes foi uma mulher e hoje tanto se apregoa a igualdade, desta vez seria a vez de um varão representar a república. Em contrapartida, estes são tempos de recuperação das desigualdades idas, o que abona em favor de uma mulher a dar o nome à república – até porque se fosse um homem teriam os linguistas de aprovar a mudança de género da república, passando-se a mencionar “o república”. 

Não colhem alternativas que proponham objetos como personificação da república, pois estamos em tempos de arreigado humanismo, tanto mais que umas certas derivas ideológicas apostam na despromoção da individualidade da pessoa (tendência que se estende até ao centro do regime, na pessoa de certos engenheiros sociais). Teria de continuar a ser uma pessoa a dar o rosto (e o resto) pela república. Por exemplo: um híbrido, uma espécie de sereia sem o mar de fundo ou um unicórnio sem crina, metade homem, metade mulher, ou apenas neutra no género (e na língua) para não ferir a sensibilidade das correntes alternativas que reclamam um lugar na sociedade e não hesitam em fazer valer a sua minoritária vontade.

Ou, só para provocar a extrema-direita (e, portanto, dez por cento do eleitorado), um cigano orgulhosamente coberto pela bandeira pátria. Ou então, a pós-república descobrir-se-ia para além da mera significância de símbolos para passar a corporizar valores. Não haveria imagem como pano de fundo da república – com a vantagem de não termos corpos seminus a agredir a estética e a sensibilidade de muitos, que continuam a ter pudor pela nudez própria e pela alheia também; haveria uma página com os valores nela vertidos, como mnemónica válida.

Só faltava estabelecer os valores. Uma hipótese estarrecedora. Em pensando bem, talvez não seja mal pensado resgatar a ideia de um busto em representação da república. Com os cuidados que a exigente modernidade exige.

6.10.22

O alfaiate das contraindicações

Gorillaz ft. Tame Impala and Bootie Brown, “New Gold”, in https://www.youtube.com/watch?v=qJa-VFwPpYA

As agulhas não vinham a propósito. Todos os instrumentos precisos (a fita métrica, a tesoura e os alfinete) estavam estendidos no estirador, à espera da sua serventia. O modelo circunstancial esperava, em pé, os cabelos grisalhos como medida da paciência enquanto esperava pela prova do fato. Um fato à medida é sempre um fato à medida. Não pode haver melhor medida do narcisismo (poderiam, com desdém, protestar os opositores dos luxos burgueses).

Havia contraindicações da usura dos modos. Ainda se, ao menos, fosse um dandy – pois os dandies são aceitáveis enquanto ornamentos exuberantes da paisagem e, assim como assim, são dissidentes da monotonia que vestia os habituais clientes do alfaiate, os piores embaixadores da burguesia decadente. O alfaiate tentava insinuar uns gramas de mudança, rompendo com o marasmo agonizante em que medravam os habituais clientes. Traduzia as contraindicações, sugerindo uma saída airosa que os pusesse a coberto da crítica mordaz dos críticos dos habituais clientes. 

Não se sabia se o alfaiate estendia ao comprido uma generosidade todavia não demandada pelos habituais clientes, ou se intuía uma solução para a sua empreitada não ser colonizada pelo padrão habitual – se não era ele que precisava de novos ares. Não era claro se o alfaiate posava ao lado dos habituais clientes ou se desejava, com o convencimento da mudança, estender os seus horizontes e ser afoito na indumentária mercada aos habituais clientes. E até podia dar-se o caso de o passa-a-palavra trazer novos clientes ao estabelecimento – mas não o podia confessar, para não ficar à mercê do impiedoso bastão dos críticos da semântica burguesa.

A empreitada do alfaiate estava condenada a ser efémera. Os clientes habituais estavam habituados a serem habituais clientes e não aceitavam sair um milímetro dos padrões estilizados. Alguns reagiram com desconforto à sugestão de possibilidades só ligeiramente extravagantes. O alfaiate tinha um dilema a conviver com a almofada: ou capitulava ao conservadorismo da clientela habitual, em nome da sobrevivência do negócio, ou ousava perder clientes que deixariam de ser habituais, podendo arrastar o negócio para a falésia da falência.

Pesou as contraindicações. Arriscou. Perdeu grande parte da clientela habitual. Alguns converteram-se ao estilo mais ousado, talvez por pressentirem que ser dandy participava da resistência ao escoar do tempo. Passou a ter uma nova constelação de clientes, mais jovens e com abertura de espírito às extravagâncias que, todavia, para eles não eram a tradução do código de vestuário. 

Depois de apuradas as contraindicações, o alfaiate era uma pessoa que acordava todos os dias sem o cenho carregado, como outrora.

5.10.22

“Uma devastação inteligente” (às hipóteses improváveis)

The Clash, “Rudie Can’t Fail”, in https://www.youtube.com/watch?v=YuS698b0ess

O berbequim incessante, como um arnês desprendido a deixar o corpo num ermo que se chama precipício. A queda livre: talvez, uma armadura lisérgica a ocupar-se do tempo, ou o refúgio imperativo de um lugar pútrido.

Ou talvez sejam dores sem sentido, uma anestesia a atravessar os vasos capilares, adormecendo no regaço de um sonho. O lugar não é pútrido, porque os dias piores são os que forem herdados na ausência de tudo. É então que sobe à tona a “devastação inteligente”: uma tempestuosa desafeição das coisas que povoam os sobressaltos, deitando por terra os pesares para abrigar uma hibernação feita de luares fora do tempo num planisfério desenhado à medida, usando um estirador com o selo das quimeras.

Disto dirão os relapsos, em forma de rejeição, tratar-se de alienação. Não interessa. A razão é apenas um tentáculo das abundantes fontes de desrazão que misturam os sinais obedecidos e esvaziam a utilidade das bússolas. Se quiserem apurar a alienação deste estado, ninguém os impede. Pois este é um estado em que a “devastação inteligente” passa por cima das arestas que cumprem as cicatrizes, transformando-as em tatuagens com prazo de validade. E nós, a tutelar essa validade e a dispor o prazo correspondente.

Os cidadãos válidos atestam que os seus pés estão assentes no chão. Não é metáfora. Os rios que rasgam a serrania podiam descrever a improbabilidade das hipóteses que não se confirma. Antes de se saber do caudal quando a várzea enfim deixa descansar o rio, ninguém diria como as águas tiveram de ultrapassar uma corrida de obstáculos até chegarem ao seu estado adulto. Se fosse possível descobrir como era a serrania antes de ser rasgada pelo rio tumultuoso, todos diriam, sem o cálculo das probabilidades, que a água não conseguiria domar natureza tão acidentada. E, todavia, conseguiu-o. Dando créditos à “devastação inteligente” que não se intimida com os prodigiosos embaraços que a estorvam.

A “devastação inteligente” não pode ser esquecida. É a arma que se subleva contra a rigidez de conceitos, a monotonia que toma de assalto a vocação heurística de cada um, condenando-o a uma imerecida pequenez. Uma mnemónica, em constante ação. 

4.10.22

Os indispensáveis (choque térmico)

The Smiths, “That Joke Isn’t Funny Anymore” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=5KLN12HB-cM&list=RD5KLN12HB-cM&start_radio=1

Barriga inchada, o bigode farfalhudo (se houvesse um), pavoneando toda a soberba em cima das luzes que embaciam os outros. Pavoneando: como se fossem as aves que desfilam a penugem extravagante, tanta ufania a servir-lhes de cais, não caiam do pedestal e se estendam com fragor num chão duro de mais para a realidade que julgam tutelar. A ostentação da penugem serve de disfarce para a queda vertical.

Do alto pedestal só podem açambarcar uma queda perpendicular, na vertical, até saberem do ónus do precipício. Nada os demove. Nem o pressentimento da decadência, o obus que se acelera sobre as cabeças inúteis à medida que o crepúsculo toma a dianteira do tempo.

Não fosse pelos cemitérios, dir-se-ia que os indispensáveis são mesmos indispensáveis. Não fosse pelos cemitérios e pelos seus habitantes, que provam o significado de finitude, sem direito a contraditório. Eles não levam em conta os cemitérios, apostando um quinhão da fortuna na sua imortalidade. A exposição à altivez deixa-os mais próximos da irrelevância. Soubessem que somos todos feitos da mesma massa perecível, soubessem que a dose variável é a que nos aprisiona à vida, e não teriam a propensão para a hegemonia de si mesmos. 

Talvez tenham mais consciência do que os outros. Mais consciência de efemeridade que cicatriza as vidas. E finjam. Finjam com toda a força, deixando cair sobre si um duro manto da medida por excesso que um qualquer espelho apadrinhe em seu nome. São os mais impreparados de todos e, ao mesmo tempo, os mais alienados, eles que incessantemente bolçam a sua indispensável condição. 

Nunca chegam a dar conta que não são eles os jurados para aferirem se são indispensáveis. Comece-se por adiantar algum trabalho à sapa por diante: ser indispensável devia ser proscrito do mapa do pensamento. Os indispensáveis, tão ocupados com uma grandeza que não deixa de ser quimérica, não têm tempo para interrogar se isso aproveita a alguém (a não ser à sua colossal vaidade). 

Tanto devia ser de sobra para prescrever os indispensáveis, devolvendo-os à humildade que desaprenderam.

3.10.22

Os brincos de porcelana e o elefante erradamente sentado no cadeirão do salão

This Mortal Coil, “You and Your Sister”, in https://www.youtube.com/watch?v=gLMqL23GbeI

Debatia-se a utilidade da carne processada:

Desconfio. Desconfio sempre. Não sei que carne está contida na carne processada.

- Se pensares na origem de tudo o que comes, deixas de ir a restaurantes. Até deixas de comprar muitos alimentos à venda nos supermercados.

A conversa mudou de bandeira quando passaram na televisão imagens de uma carnificina que tivera lugar num campo de futebol, algures num país asiático.

(As catástrofes dizem-nos pouco na medida inversamente proporcional da distância que delas nos separa. Se adicionarmos a medida difusa da geografia que nos é distante, mais remota se torna a comiseração – o que não é mau sinal: a comiseração devia ser banida do dicionário das almas, ela não resolve as angústias dos mortificados por uma desgraça; só resolvem as dores interiores de quem se comisera, como se fosse uma expiação interior sem legítimo remetente, um pedido de desculpa que não é precedido de culpa alguma.)

Que horror! Como é possível, num lugar onde as pessoas vão para se divertir e acabam por de lá sair cadáveres?!

- É um a nossa linhagem. Somos os piores terroristas de nós mesmos. Uma diversão depressa atravessa o limiar do aceitável e torna-se letal. As paixões, quando ninguém lhes mete travão a fundo, andam de braço armado com a desrazão, a violência, até a morte.

Onde é que aquilo aconteceu?

- Só sei que foi na Ásia – talvez nas Filipinas, ou na Indonésia (e disse-o com o desprendimento de quem confunde a geografia dos dois lugares e assim os condena à irrelevância; à mesma irrelevância de quem exerce a comiseração.)

Ficaram em silêncio enquanto as imagens da violência sem freio passeavam pelo relvado onde se devia jogar à bola. Esse devia ser o silêncio meticuloso que deviam hastear enquanto viam as imagens de barbárie, a orgia que veste as pessoas do avesso para as despojar de dignidade. O mesmo silêncio que devia persistir quando essas imagens fossem substituídas por outras quaisquer, outra maldição que se abata sobre o Homem, ou um episódio que confirme a propensão para sermos algozes de nós mesmos, em círculo vicioso, interminável. 

Os dois conseguiram respirar o silêncio. Não tinham nada que valesse a pena ser dito sem caírem na banalidade, sem se emprestarem ao lugar-comum de quem sobe à posição de superioridade moral e comenta, cheio de soberba, as vilanias dos outros. Como se, eles próprios, não fossem capazes das suas torpezas.