Revisão da matéria dada. Em cada artéria a cidade revê-se nos olhos que são sua matéria avulsa. Possivelmente todos são forasteiros: nas ruas sucessivas, os rostos são todos desconhecidos. Mas talvez eu seja o fugitivo, exilado sem saber, preso dentro da fortaleza em que se tornou a cidade. Talvez seja eu, perenemente no estuário de um ermo lugar sem nome no mapa.
A parede do quarto recebe um papel amarelado que funciona como mnemónica. A cada dia vou inscrevendo uma jura, um ensejo, um punhado de palavras que podia ser um poema se fosse poeta, uma pessoa a quem não posso deixar de falar, uma incumbência inadiável, o mosto fresco que se abraça à manhã madrigal. Trago um sangue evasivo que se furta à memória. Antes que seja consumido pela desmemória, aprisiono-me às ameias do papel amarelado que serve de moldura aos dias consecutivos.
Tenho medo que o esquecimento destas mnemónicas consuma o dia em ausência.
Não me importa ser fugitivo por dentro do próprio corpo. Os figurinos estão repletos de corpos que parecem a perfeição desenhada ao milímetro em estiradores manobrados por gente impecavelmente esterilizada. Escondem os rostos atrás de uma máscara que não se distingue como máscara. Atirado o véu para as lonjuras, as figuras todas (figurantes e seus mentores) mostram as credenciais luciferinas. Daqui também se foge. A desconfiança metódica da perfeição é redentora.
O caudal emagrecido sublinha o estio prolongado, transfigura o atlas das paisagens. Alguém disse que parece o norte de África, tamanha a aridez que redesenhou os campos e os montes e as linhas de água, impondo o seu silêncio fúnebre. Cadáveres de animais acompanham o caudal quase inerte. O morticínio, por causas naturais. O que não esconde a feição de uma guerra de nós contra a natureza (ou de nós contra nós próprios, o alçapão de uma autofagia repetida). Há teimosos fugitivos que viram o rosto para o lado contrário quando a devastação entra pelos olhos dentro.
O lado desembaciado é difícil de encontrar. Dir-se-ia, o ponto de fuga ambicionado, contra as lantejoulas decadentes que insistem em enfeitar os tempos que assim soam a arcaísmo. Estamos condenados a fugas interiores. Como se houvesse um lado escondido que mais ninguém conhece, que nos alberga quando queremos ser fugitivos.
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