24.10.22

Transverso

Dry Cleaning, “Don’t Press Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=4pJ377GGIGA

Era capaz de jurar que o rapaz tinha acabado de assaltar um punhado de almas, as que estavam tresmalhadas no púlpito das árvores não acossadas pelo Outono. Sem esporas, como se fosse um cavaleiro atirado à sorte, golpeava o pensamento fundo das almas à mercê (como se faz às castanhas antes da assadura), mas delas não se alimentava. Era por diversão – havia alguém que, estarrecido pelo despudor, diria tratar-se de vandalismo puro. O rapaz, de olhos escancarados, seguia pela rua fora como se mais ninguém houvesse, indiferente ao demais, mergulhado sobre os seus fantasmas. Tantas almas rapinadas, não podia esperar se não ficar povoado pelos fantasmas expropriados.

Não era por causa da propriedade privada que a nova ponte do metro não podia ser construída. Fossem feitas as expropriações em cabimento e os terrenos ficavam desimpedidos para o xisto onde assenta o progresso. A comandita de figurões que desfilou na cerimónia de inauguração da inauguração das intenções da obra passeava a pança ensoberbada – não é para qualquer um deixar o seu nome para memória futura de uma nação, saiba ela dedicar-lhes as devidas genuflexões. Se ao menos houvesse um que, demencial, furasse as diligências do mestre de cerimónias e berrasse, com a força dos pulmões cheios de loucura, oxalá voltássemos a ser arcaicos outra vez (antes de ser afastado por um safanão decidido de um gorila de suas excelências). Mas a obediência é critério da sobrevivência.

Em todo o caso, o ginásio estava meio cheio. Alguns habitués das anfetaminas povoavam os espelhos, posando os músculos que andam nos andaimes da preparação física. Se um cronómetro se dedicasse ao criterioso compulsar do envaidecimento marinado pelo espelho, a balança penderia a favor (ou seria melhor dizer: a desfavor?) do exercício de toda aquela musculatura. Menos mal. Imagine-se a ausência de ufanismo dos seguranças de ministros, de portas de discotecas e de bares de alterne, e de outros mercenários a soldo de qualquer um, e a montanha disforme de musculatura que para ali não iria.

No cruzamento, enquanto o semáforo estava vermelho, a rapariga esguia entretinha os condutores com acrobacias diversas acompanhadas de uns bastões coloridos. Era tão esguia que parecia não ter músculos. Os condutores só queriam que o semáforo deixasse de ser uma inconveniência. Mal deram conta da rapariga. O país anda tão desatento às artes. Se ao menos os cidadãos tivessem absorvido, cada um, trezentas almas de gente existente, falecida e nascitura, como o rapaz involuntário possuído por umas trezentas almas metodicamente furtadas, as artes seriam creditadas com o valor que merecem.

A noite deitou-se no manicómio e no resto da cidade e não há notícia que o rapaz que varreu tresloucadamente as ruas tenha encontrado repouso numa cama do estabelecimento. Alguém disse, em perfeito murmúrio, que uma grada figura do regime, senador reconhecido, foi visto nas imediações. Não se soube se foi por acaso ou se era prelúdio de uma estadia no manicómio. 

Podia ser que houvesse alguma esperança para a pátria tão descoroçoada (e os caroços são a alma carnuda da fruta).

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