12.10.22

O governo já sabe que no próximo ano vamos pagar treze milhões de euros de multas por excesso de velocidade (ou: oráculos magistrais)

LCD Soundsystem, “Tonite”, in https://www.youtube.com/watch?v=lqq3BtGrpU8

Dizem os entendidos que as previsões económicas são do domínio do esotérico. Outros alegam fazer uma rasante ao metafísico. A blague sobre dois economistas que têm capacidade para alinhavar três previsões e todas se revelam erradas circula no meio (e fora dele), aproximando a economia da meteorologia (quando os meteorologistas se enganam, para desprazer da populaça que os acompanha), ou, para visões mais céticas, da astrologia. 

A ciência da divinação ocupa páginas do orçamento de Estado. O orçamento baseia-se nas previsões económicas mais reputadas, contendo previsões de receita e de despesa. É compreensível que estejam previstos os gastos: grande parte tem regularidade, obedecendo a um padrão que lança âncora na tendência herdada de anos anteriores. Já quanto a prever receitas (de impostos e de multas), a conversa é diferente: muitos dependem de acontecimentos imprevisíveis, irregulares, ou sujeitos a circunstâncias que escapam à tutela do governo (por mais que ele se atribua um capacidade de deificação ímpar). 

Para o próximo ano, o governo vai instalar radares de última geração nas autoestradas e nas estradas. Devem ser exímios caçadores do excesso de velocidade, a crer na previsão de receita cobrada através das cominações de desatentos, distraídos, ou puramente infratores. O orçamento manda dizer: treze milhões de euros – treze. Dirão os especialistas na matéria: este número não é ao acaso, fundamenta-se nas tendências dos anos anteriores, com atualização esperada do instrumento tecnologicamente evoluído com capacidade para executar uma perseguição diligente aos infratores que teimem em queimar os limites da velocidade.

(Faz lembrar outra manifestação sublime do autoritarismo mal disfarçado de engenharia social de cariz socialista: há dias, à entrada de uma grande superfície comercial, situei-me perante uma placa com o horário de abertura, com a advertência, em letras garrafais, que o horário resulta da “imposição” do decreto-lei número tantos-de-tal. Por imposição: que é o mesmo que admitir pura imposição, na exibição do longo e tentacular braço da lei, em ostensivo alardear da autoridade das autoridades competentes. Bravo, o socialismo este.)

Para o fim sobram umas interrogações: e se os condutores, assustados com o número – treze-milhões-treze, uma renda inteira! – mudarem o comportamento e passarem a respeitar os limites da velocidade, o que será feito dos treze milhões de euros previstos? Estará o zeloso governo na disposição de destapar ali o cobertor para tapar aqui uma fenda que ficou aberta, para não prejudicar as previsões orçamentais (e para as contas públicas, malgré Sampaio, continuarem a bater certo)? Ou o governo vai ordenar aos militantes do partido, ao bom e bem-mandado séquito, que, à vez e em obediência a um cronograma detalhado, se façam à estrada em velocidade alucinante, só para se cumprir a arrecadação dos treze-milhões-treze de euros?

(A coima seria reembolsada pelas generosas finanças do partido. Ou seja, no fim das contas, a entrada e a saída seria a mesma: o habitual sacrificado.)

Houvesse sensibilidade para estes assuntos, o que inclui a capacidade provocatória do cidadão que não quadra com a argamassa da maioria, e o conhecimento da previsão dos treze milhões de euros cobrados após o escrutínio meticuloso dos radares com tecnologia de ponta, e não se poderia imaginar incentivo melhor para mudarmos o comportamento ao volante. Passaríamos a respeitar as limites de velocidade, sem o menor desvio. Só para contrariar o dinheiro que o governo considera em caixa antes mesmo de o jogo ter começado.

Ah, bendito, bravo socialismo. O que seríamos sem a tua queda inata para o paternalismo, para a condução das almas sempre tresmalhadas?

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