10.10.22

O que aprendias com o quilómetro quadrado

Andrew Bird, “Manifest” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=uDbJFF7H91M

O circuito fechado embaciava o que os olhos queriam ver. Protestavas. As cortinas não deviam descer sobre o olhar inquisitivo, esse era um nevoeiro dispensável. A pequenez já é sanha que chegue para amesquinhar as pessoas que desafazem os dias como se todos fossem sombras de si mesmos. O olhar pesaroso arqueia-se sobre elas, fá-las tombar sobre um peso bruto, intempestivo.

Alguém sussurrou que um quilómetro estava à disposição. Era um quilómetro quadrado. Feitas as medições, um quilómetro quadrado era um perímetro aceitável se fosse habitado por uma só alma. Não sabias o que esperar: tirando os lugares propositadamente ermos, a densidade populacional era uma extravagância para os sentidos, e pressentias, antes dos banhos de multidão, que o saldo se jogava a teu desfavor.

Não tinhas nada a perder: se a hipótese considerada fosse a pior de todas elas, seria um quilómetro quadrado sobrepovoado. As pessoas andariam acotoveladas e, se as coisas ainda tivessem a companhia das doenças que se contagiam à menor inspiração do ar alheio, a combinação dos fatores não era promissora. A morte seria sempre pior cenário. Já tinhas decidido não recuar. Avançaste pela rua de sentido único (pelo menos de acordo com o por ti convencionado). Não estava ninguém naquele quilómetro quadrado. O olhar perdia a noção do perímetro. O lugar era só para ti, durante uma hora (e o tempo estava a contar). 

Pouco tempo depois percebeste porque ninguém queria aquele quilómetro quadrado. Era um quilómetro quadrado, mas quadrado no sentido de atávico, o fiel da balança do tempo gasto pelo desamor que as pessoas tributaram àquela nesga de terreno. Havia pedregulhos insistentes com arestas fratricidas. Silvas a rodos, crescendo a caminho do céu. Nas partes descampadas, um mar de lama mostrava a linhagem carbonífera do subsolo. O ar era fétido. Sentiste um silvo repetitivo a brotar do meio do silvado; intuíste que era uma serpente, mas não sabias das suas intenções. 

Não haverias de recomendar aquele quilómetro quadrado, nem aos inimigos que não tens. Não quadrava com a tua progressista linhagem, o quilómetro tão quadrado. Sentiste que os vinte minutos em que por lá erraste eram literatura de horrores, como aqueles vultos sem nome que montam espaço nos pesadelos e teimam em não os desembaraçar.  

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