31.10.22

Encomenda

The Fat White Family, “It Is Raining in Your Mouth” (live at Coventry Cathedral Ruins), in https://www.youtube.com/watch?v=60-ECYLD79U

As horas abrem-se sobre as portas, esperam pela luz inaugural. Pintam os alpendres que tomam posição perante a alvorada. Dizem que o chão treme sob os pés das almas consentidas. Os vultos que se assenhoreiam do adro ditam o arfar do relógio. Não são tiranetes. Receberam a incumbência de arrotear o caminho válido por onde os demais vão seguir. Cabe-lhes saber se vão a seguir.

Dantes, a penumbra era verosímil. Caía como uma cortina que encerra o palco. Sentia-se ao longe a maresia. A casa, longínqua, debatia-se com o Inverno tumultuoso. Era uma luta desigual. Ninguém desistia de ser amanhã. O Inverno podia esperar na sua demora: as pessoas sabiam que esse era o magma que as trazia de atalaia; ninguém se acomoda se não houver sobressaltos estimados como verbos condutores. 

Ao menos, os vidros da casa eram a costura da fortaleza. Por isso, as casas eram inestimáveis. Razão tinham os agiotas fracassados: as casas deviam ser mais dispendiosas, pela proteção que as pessoas encontram quando têm nelas paradeiro. Mas ninguém cuidava do cuidado das casas. Enquanto refúgio contra o Inverno iracundo, estavam expostas às tempestades, ao gasto operado pelo frio cortante, à neve demorada que vagarosamente corroía as suas fundações. 

As pessoas não esperavam pela medida larga do futuro, lá onde as casas sucumbem como estilhaços às conspirações que demoram a vingar e a ferrugem sobe metalicamente à boca. As pessoas preferiam emudecer perante a nostalgia do presente. Viviam aprisionadas ao presente, como matéria fungível entre as dedadas lacradas por deuses intemporais. Não podiam ser censuradas. Se tivessem cicatrizes, eram da mesma perenidade de tatuagens. Sem o dizerem, acreditavam nas casas intemporais. Não diziam o mesmo de si mesmas, mesmo que soubessem que as pessoas, como cimento da espécie, são da mesma imorredoira matéria que as casas.

Antes que a noite retaliasse contra o dia consecutivo, arrumava-se o suor despendido na angariação do dia. As pessoas não tinham medo de encenar os oxalás que fossem precisos. Mesmo que a tempestade não se anunciasse e os corpos fossem trespassados pelo medo, haveria sempre uma casa como refúgio.

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