Era inadmissível: escolheram a hora em que o super-homem foi ao laboratório de análises tirar sangue e atacaram uma galeria de arte onde estão expostos quadros de um polémico pintor. Dois dos quadros ficaram inutilizados. É uma perda incalculável. Só é maior a perda que sofreu a liberdade de expressão, tão vilmente atacada por um punhado de estúrdios que se dizem testas-de-ferro da “democracia verdadeira”.
O super-homem ainda foi chamado para ir à galeria de arte e terminar a baderna instalada. Nesse momento, desfaleceu ao espreitar a agulha a espetar a veia. O super-homem não aguentou a imagem da agulha sedenta do seu sangue a perfurar a veia e a beijar, enfim, o sangue tão precioso. Desfaleceu no ato, sem possibilidade de o trazer ao conhecimento a tempo de expulsar os meliantes que ocupavam a galeria de arte.
Em correspondência com as capacidades sobre-humanas, o super-homem era capaz de narrar com detalhe o que colonizou o pensamento durante o desfalecimento. Até nesta capacidade o super-homem se distinguia do comum dos mortais. Eram imagens que se atropelavam umas às outras, um rodopio de lugares e pessoas e palavras sobrepostas, como se o idioma deixasse de fazer sentido. Uma mistura de paisagens atuais e pretéritas fundidas num mesmo cenário, pondo em conversa personagens vivas com outras que já tinham passado pelo crivo do funeral.
Durante o desfalecimento, o super-homem ouviu um sussurro da bondade. Figura mítica, que se o não fosse talvez dispensasse a existência do super-homem, revelou-se na pessoa da enfermeira que tinha espetado a agulha na veia do super-homem. Inebriado pela bondade, o super-homem demorou a retomar o conhecimento. Uns apostaram que o super-homem estava cansado de combater as fontes de maldade que enxameiam o mundo, enamorando-se da espiritualidade contagiante da bondade. Outros discordaram e, adeptos de teorias da conspiração, especularam que a bondade, apoderada da figura da enfermeira, espetou a agulha de forma tão veemente que o super-homem ficou anestesiado.
Afinal, o super-homem foi denunciado. Ninguém o conhecia de viva pessoa, que sem a indumentária que o identificava era (como manda o mito) um de nós. Foi ele, ao saber do desfalecimento e ao recuperar o acontecido, que admitiu já não ter condições para continuar a ser o super-homem.
No dia seguinte, apresentou a demissão ao ministro da tutela. O super-homem não pode ter fragilidades intrínsecas ao homem comum.
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