26.10.22

O vagabundo não gosta de lagosta

Nitin Sawhney, “Movement”, in https://www.youtube.com/watch?v=-HDq3BtApnA

O vagabundo não gosta de lagosta. Perguntaram-lhe como podia saber se gostava de lagosta, ao que o vagabundo exclamou, como aquele ar de quem faz dele louco (e ele sabia que não era), “então como sei? Pois se já provei lagosta!”

Os especuladores, que adoram ser arquitetos de estórias em que os outros são os atores, entretinham-se a adivinhar onde tinha o vagabundo experimentado lagosta. Uns alvitravam que o vagabundo fora, noutros tempos, pessoa bem-posta na vida, um burguês que esbarrou na decadência. Nos seus tempos de burguesia, degustou lagosta. Essa experiência foi a base para a revelação do seu (não) gosto. Outros, mais preconceituosos, não acreditavam que o vagabundo tivesse comido lagosta num restaurante, nem acreditavam que tivesse tutelado uma vida desafogada. Levantavam a hipótese de ter encontrado os restos de uma lagosta no lixo e de a ter provado assim mesmo. Para concluírem: pudera, a lagosta estava no lixo, o que está no lixo não pode ser uma boa experiência gastronómica (objetavam os da confraria da lagosta).

Ninguém perguntou ao vagabundo enquanto se entretinham com hipóteses espúrias, sem darem conta que era do vagabundo que se serviam para o festim de especulações. Um deles ainda pensou se não era caso para travarem o exercício a fundo por causa da proteção de dados pessoais. Sussurrou ao amigo do lado, que devolveu o remoque: “meu caro, isto é caso para muito mais; é caso para se chamar a Constituição, é um direito de personalidade vilipendiado.”

Os dois saíram, à francesa. Não queriam continuar a ser parte do exercício soez a que os outros se dedicavam. Agora já tinham empurrado as adivinhações para o estado mental do vagabundo. E ele, mesmo à ilharga, a ouvir tudo e mais alguma coisa, imperturbável. A imperturbabilidade incomodava os bem-postos burgueses que continuavam a bolçar disparates. “O homem é surdo”, disparou um deles, em hipótese de adiantada decadência interior. 

O vagabundo levantou-se, na solene pose de indiferença de que não abdicou. Dirigiu-se à ponte grande que atravessava o rio. Estugou o passo e, entoando uma musiqueta qualquer, ininteligível a música, foi ao bornal com os seus haveres e tirou uma máquina de aparar cabelo. Enquanto cantava a plenos pulmões, a voz a atirar para o desafinado, a mão direita deu corda à máquina de aparar cabelo e dirigiu-a à cabeleira abundante e deslavada, irrompendo cabelo fora, sem hesitações. Jurou que antes de atravessar o rio a calvície estaria instalada. Antes isso do que revelar como descobriu por que não apreciava lagosta.

Malditos sejam os pequenos burgueses, armados em filhos de autênticas, mas bem disfarçadas, meretrizes – rematou, assim que a ponte já não era sobranceira ao rio e olhou para trás, para ver as melenas arbitrariamente distribuídas pelo passeio da ponte.

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