25.10.22

As mãos suadas

The Cure, “And Nothing Is Forever”, in https://www.youtube.com/watch?v=9qh-1-Bo4bk

As mãos pertenciam ao particípio passado, como se tivessem sido esvaziadas por umas luvas de formol. Os lugares ermos não eram pródigos em oxigénio; mal se conseguia respirar. E, todavia, as mãos suavam abundantemente, e estava frio.

As vozes falavam de suores frios. De boca em boca, corria o boato que as mãos suavam e nem sequer estava calor. Não era um rumor. As mãos atravessadas na lotaria do futuro respondiam com o medo próprio de quem nada sabe. Dizia-se que o suor era a caução do medo.

Às vezes, pressentiam-se os corredores apertados do labirinto por onde se encavalitavam fantasmas e rostos bondosos. Era uma fusão de personagens díspares. Não havia vozes levantadas. Nem protestos. Os contrários passavam uns pelos outros sem se sublevarem numa beligerância que, de outro modo, parecia incandescente. Uns e outros escondiam as mãos suadas; escondiam o que podia apimentar a beligerância. Aprenderam a conviver sem darem parte da hostilidade. Não eram próximos uns dos outros. Limitavam-se a uma tolerância recíproca. Atendendo às más credenciais da espécie, era um avanço que ninguém menosprezava.

Os que ousaram romper a paz todavia podre caíram em desgraça. Sobre eles abateu-se uma torrente imparável de mãos suadas. Levados pela enxurrada, acabaram condenados à irrelevância por todos, até os seus pares. Os mais empenhados sabiam que o equilíbrio era frágil e que fora difícil cimentá-lo. O museu dos horrores não dispensava um capítulo sobre os episódios em que as armas falaram mais alto do que as vozes das pessoas. Para avivar memórias adormecidas.

Ainda sobrava alguma lucidez entre a desesperança geral. Os braços não se levantavam ao menor esboço do fermento da violência. Sucumbiam ao peso das mãos suadas. Capitulavam perante a paz que se adestrava, inescrupulosa. Os espíritos federados sabiam das diferenças. E sabiam que as diferenças não podiam ser a besta apontada contra os olhos esmorecidos. As diferenças eram a enseada onde a paz se refugiava. 

Na praça central, um monumento foi levantado em homenagem ao centenário de duradoura paz. Um par de mãos em pose de contemplação, como se o horizonte fosse um mar de possibilidades e todas amputassem a dilaceração das almas. Sobre as mãos, uma água constante, furtiva. Como metáfora das mãos sempre suadas.

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