7.10.22

Pós-república (o novo busto)

LCD Soundsystem, “New Body Rhumba”, in https://www.youtube.com/watch?v=JG17jiPdbb0

Se ao menos a República – digo: a senhora que ao regime empresta o rosto e o busto – tivesse vivido em tempos de sensibilidade com os dados pessoais, não saberíamos do rosto e do busto que se emprestam como símbolos da república. A menos que a senhora tivesse assinado o consentimento e se acrescentasse outra exigência: que os súbditos também consentissem que a sensibilidade não é hostilizada por verem os seios nus da República.

Se a república nascesse hoje, que símbolos seriam sua representação? Ando há dias com esta interrogação a adejar o pensamento e do pensamento não consigo um esboço de resposta. Os símbolos são hasteados em função das contingências dos tempos, de representações que são os alicerces em que se cimenta uma pertença. E os tempos variam, como muda a matéria-prima do cimento das identidades.

Não sei se seria um homem a dar a cara pela república. Se dantes foi uma mulher e hoje tanto se apregoa a igualdade, desta vez seria a vez de um varão representar a república. Em contrapartida, estes são tempos de recuperação das desigualdades idas, o que abona em favor de uma mulher a dar o nome à república – até porque se fosse um homem teriam os linguistas de aprovar a mudança de género da república, passando-se a mencionar “o república”. 

Não colhem alternativas que proponham objetos como personificação da república, pois estamos em tempos de arreigado humanismo, tanto mais que umas certas derivas ideológicas apostam na despromoção da individualidade da pessoa (tendência que se estende até ao centro do regime, na pessoa de certos engenheiros sociais). Teria de continuar a ser uma pessoa a dar o rosto (e o resto) pela república. Por exemplo: um híbrido, uma espécie de sereia sem o mar de fundo ou um unicórnio sem crina, metade homem, metade mulher, ou apenas neutra no género (e na língua) para não ferir a sensibilidade das correntes alternativas que reclamam um lugar na sociedade e não hesitam em fazer valer a sua minoritária vontade.

Ou, só para provocar a extrema-direita (e, portanto, dez por cento do eleitorado), um cigano orgulhosamente coberto pela bandeira pátria. Ou então, a pós-república descobrir-se-ia para além da mera significância de símbolos para passar a corporizar valores. Não haveria imagem como pano de fundo da república – com a vantagem de não termos corpos seminus a agredir a estética e a sensibilidade de muitos, que continuam a ter pudor pela nudez própria e pela alheia também; haveria uma página com os valores nela vertidos, como mnemónica válida.

Só faltava estabelecer os valores. Uma hipótese estarrecedora. Em pensando bem, talvez não seja mal pensado resgatar a ideia de um busto em representação da república. Com os cuidados que a exigente modernidade exige.

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