20.10.22

Campeonato do mundo de piratas informáticos

Yard Act, “Fixer Upper” (live Reading Festival 2021), in https://www.youtube.com/watch?v=2Q9OcluSnnM

O concorrente da Lituânia bebia sossegadamente o café enquanto os dedos deslizavam o ecrã do telemóvel. Queria saber como iam os seus investimentos em cripto moedas. A concorrente da Irlanda, que não escondia o encantamento com o concorrente das Filipinas (ela sempre teve queda para homens e mulheres exóticos) chamou a atenção do concorrente da Lituânia que estava atrasado para o seu slot. O rapaz estremeceu e, desastrado como são os piratas informáticos (um bando de totós), deixou cair o telemóvel que se esfrangalhou no chão de mármore do lobby do hotel.

O concorrente da Argentina parecia um zombie. O concorrente de Madagáscar segredou, a uma audiência composta pelos concorrentes da Mongólia, da Noruega e da Venezuela, que o concorrente da Argentina saiu em ombros do bar na noite anterior, à custa de tantos shots seguidos. A concorrente da Venezuela saiu do grupo para atender o telemóvel. Pelo secretismo, dir-se-ia tratar-se de uma encomenda dos serviços secretos venezuelanos (se ela não fosse uma contra espiã a soldo dos “americanos”.)

Não havia concorrentes “americanos” registados no certame. Que não se retirasse a conclusão que não há piratas informáticos nos Estados Unidos, ou que eles são tão fracos que ficam à mercê dos colegas de outros países que são pagos a peso de ouro para invadirem as redes sensíveis do país, desmentindo-o como país mais poderoso do mundo. 

Corriam versões diferentes da cumplicidade dos piratas informáticos com as autoridades dos países. Em voz própria, todos negavam a ligação. Queriam que deles soubessem ser hasteada a bandeira da independência. Eram – ou queriam ser vistos como – lobos isolados, corriam por conta própria e só respondiam perante a rebeldia que lhes corre no sangue. Todos os piratas informáticos apresentavam credenciais que os afastavam da tutela dos respetivos governos (até nas ditaduras, nos regimes autocráticos, nas cleptocracias, nas oclocracias e nas kakistocracias). Quando os microfones e as câmaras que filmavam o evento estavam desligados, os piratas informáticos admitiam que estavam a soldo dos serviços secretos de um ou mais países, ou de sabotadores natos. Muitas vezes, fazendo jogo duplo: eram atores de invasões informáticas só para serem contratados pelo país visado para resolverem o crime.

Falta dizer que a concorrente indiana se sagrou campeã mundial dos piratas informáticos. Ninguém a viu sob o véu plúmbeo que quase cobria o rosto na totalidade. Um dos jornalistas destacados para o campeonato concluiu, depois de três dias de acompanhamento das atividades de hacking, que os piratas informáticos reduzem os serviços secretos à insignificância, se quiserem. Um ingénuo esteta dos sentimentos humanos, que se alistou como voluntário para ajudar a organização, sugeriu que os piratas informáticos deviam receber instrução sobre cidadania e assuntos afins. A prazo – recomendou, sem dar conta da sua cândida ideia – devia ser assinado um código de conduta para regulamentar a atividade dos piratas informáticos. Os ditos cujos responderam ao repto, anunciando, sardonicamente, a criação do sindicato mundial dos piratas informáticos. 

O dia seguinte, esse, começou pela noite.

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