3.10.22

Os brincos de porcelana e o elefante erradamente sentado no cadeirão do salão

This Mortal Coil, “You and Your Sister”, in https://www.youtube.com/watch?v=gLMqL23GbeI

Debatia-se a utilidade da carne processada:

Desconfio. Desconfio sempre. Não sei que carne está contida na carne processada.

- Se pensares na origem de tudo o que comes, deixas de ir a restaurantes. Até deixas de comprar muitos alimentos à venda nos supermercados.

A conversa mudou de bandeira quando passaram na televisão imagens de uma carnificina que tivera lugar num campo de futebol, algures num país asiático.

(As catástrofes dizem-nos pouco na medida inversamente proporcional da distância que delas nos separa. Se adicionarmos a medida difusa da geografia que nos é distante, mais remota se torna a comiseração – o que não é mau sinal: a comiseração devia ser banida do dicionário das almas, ela não resolve as angústias dos mortificados por uma desgraça; só resolvem as dores interiores de quem se comisera, como se fosse uma expiação interior sem legítimo remetente, um pedido de desculpa que não é precedido de culpa alguma.)

Que horror! Como é possível, num lugar onde as pessoas vão para se divertir e acabam por de lá sair cadáveres?!

- É um a nossa linhagem. Somos os piores terroristas de nós mesmos. Uma diversão depressa atravessa o limiar do aceitável e torna-se letal. As paixões, quando ninguém lhes mete travão a fundo, andam de braço armado com a desrazão, a violência, até a morte.

Onde é que aquilo aconteceu?

- Só sei que foi na Ásia – talvez nas Filipinas, ou na Indonésia (e disse-o com o desprendimento de quem confunde a geografia dos dois lugares e assim os condena à irrelevância; à mesma irrelevância de quem exerce a comiseração.)

Ficaram em silêncio enquanto as imagens da violência sem freio passeavam pelo relvado onde se devia jogar à bola. Esse devia ser o silêncio meticuloso que deviam hastear enquanto viam as imagens de barbárie, a orgia que veste as pessoas do avesso para as despojar de dignidade. O mesmo silêncio que devia persistir quando essas imagens fossem substituídas por outras quaisquer, outra maldição que se abata sobre o Homem, ou um episódio que confirme a propensão para sermos algozes de nós mesmos, em círculo vicioso, interminável. 

Os dois conseguiram respirar o silêncio. Não tinham nada que valesse a pena ser dito sem caírem na banalidade, sem se emprestarem ao lugar-comum de quem sobe à posição de superioridade moral e comenta, cheio de soberba, as vilanias dos outros. Como se, eles próprios, não fossem capazes das suas torpezas. 

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