31.3.23

Tangerinas e outros meridianos

Massive Attack, “Girl I Love You”, in https://www.youtube.com/watch?v=PG78zO28Pu0

Trocavam os bês pelos vês, mas não o contrário. Diziam “bom dia” a meio da tarde. Não se assustavam com os espantalhos meticulosamente colocados a meio do caminho – nem com os espantalhos que os haviam assim disposto. Se chovia, saíam à rua e caminhavam quilómetros a fio, só para se sentirem ensopados. Se o vento estivesse alteroso, era do que se alimentavam. Do que dissessem ter saído de moda, era o que gostavam. Participavam na procissão dos ousados. Medo, era palavra que não constava do seu dicionário.

Apanhavam livros puídos em alfarrabistas depois de terem amesendado numa esplanada estival. Só ouviam música que não tinha lugar nos hábitos banalizados (que soubessem). Não os convocassem para manifestos, imperativos categóricos ou dogmas do politicamente correto, manifestações. Não os quisessem ver de braço dado com as brigadas que viram os números do avesso e insultam a palavra “democracia” quando se dizem seus embaixadores. No Verão, exilavam-se dentro de casa: detestavam a canícula que nem se comparava com a que aterroriza lugares mais meridianos. Se soubessem, viviam nórdicos.

Fundaram a confraria da tangerina. Inventaram um receituário já abundante em que a tangerina se junta como ingrediente. Inventaram uma receita original de sorvete de tangerina. Outra de pudim de castanhas, só que de tangerina. E espadarte com infusão de tangerina (e aneto). Um dia, em passeio por terras interiores, encontram um pomar de tangerinas e tiraram trezentas fotografias. Deu-se o acaso de saberem que o pomar estava à venda e nem regatearam o preço. Quando voltaram a casa, já eram proprietários rurais. 

Também gostavam do luar, auroras boreais (que só conheciam de fotografias), sonhos, telhados de xisto, estradas nacionais desclassificadas e com asfalto irregular e esburacado, o mar tempestuoso, cachimbos (que nunca fumaram), gatos pardos, vinhas em socalcos aritmeticamente orquestrados, teatros rebeldes, poetas malditos, o amor que era seu e singularmente seu. 

Um dia, prometeram que iriam a um lugar remoto que juraram visitar. Quando lá chegassem e se extasiassem com as paisagens, iriam selar o momento com um beijo. Ficaria emoldurado como um beijo imorredoiro, a magnífica paisagem em pano de fundo. Porque a vida sem o lado amoriscado não tinha serventia, era um longo bocejo que se recusavam a apadrinhar. Quando estivessem diante do vulcão adormecido, dir-lhe-iam o segredo para voltar à vida. Levar-lhe-iam tangerinas, para darem ao vulcão o ânimo que fosse a alquimia que precisava. Registariam a constelação de cores e de odores em fotografias catedráticas, deixando, em letra dourada, estrofes sem pavimentação.

30.3.23

Breaking the balls of History (fashion nuggets)

Alison Goldfrap, “So Hard So Hot”, in https://www.youtube.com/watch?v=C1193zh-q5k

E se fôssemos ao futuro, só para dele sabermos um módico, e depois viéssemos ao presente para adulterar o passado? Seria como uma indulgência a favor da espécie, espreitando sobre o futuro para com ele aprender. Aprender a modificar o presente, para que a História acabe por ser diferente da que está em espera. Não me importava de sacrificar por este desígnio. Haja quem seja generoso ao ponto de decantar um pouco do futuro a destempo; haja quem tenha esse desassombro, que ser conhecedor do futuro a destempo não é vantagem que alguém tenha orgulho de ostentar: o futuro está em vias de ser pior do que foi o passado. 

- Dizes que a ciência podia inventar um meio de ludibriar o tempo? Meter um pé no futuro só é possível se alguém der instruções ao tempo para se antecipar à sua medida, para só então o viajante apanhar o elevador que o leva ao futuro. Uma vez no futuro, não saberá que chegou ao futuro. Vive a sua segunda ilusão: julga que está no presente, pois o tempo que alguém vive é a definição do tempo presente; e, todavia, já chegou ao futuro e começa a inventariar as memórias de um tempo que ainda não saiu das conjeturas – um nado-morto, às vezes, por pequenos acasos. Enquanto agente destacado para o futuro, só conhecerá o que conhece antes de ter sido destacado: o presente. Ou nem isso: porque no futuro sente que está a viver o presente, e quando for devolvido ao presente terá saudades do futuro que não chegou a sentir.

E qual é a sua primeira ilusão?

- É acreditar que sai de um tempo para entrar noutro, ainda inexistente. Torna-se prisioneiro de si mesmo. O campo magnético dos diferentes tempos não joga a seu favor. Corre o risco de ser um desconhecido para o futuro que intui como presente e para o tempo presente que o tornou embaixador do futuro que ninguém sabe que vai acontecer. Um apátrida dos diferentes tempos. Órfão do avesso.

E se o milagre for possível? Se a ciência for tão depressa, tão depressa, que ultrapassa o tempo e passa a dominá-lo? Por um instante, concorda com este pressuposto. Se esta impossibilidade for derrotada, os que forem escolhidos (pode ser um exílio penoso, contudo) podem regressar ao tempo presente a tempo de mudarem o que mais tarde vem a ser História.

- Para ti será uma utopia. Para mim, é uma distopia. Não quero que as fragilidades de que somos feitos sejam alteradas mediante o recurso a ardis. Não quero viver num futuro em que é possível ir a um futuro posterior. Não quero ser parte de um mundo em que podemos distorcer o presente apenas para a História não ser o que seria se o tempo obedecesse ao seu modo. Não quero que seja possível partir os tomates da História. Porque ela deixa de ser História e passa a estar cativa dos caprichos de uma casta. A minha confiança na bondade e na lucidez das pessoas não chega para validar a tua utopia. 

29.3.23

A soldo (mercenário)

New Order, “Everything’s Gone Green”, in https://www.youtube.com/watch?v=SFDKOxLUXQE

Uma silhueta – apenas uma silhueta. Este era o libelo que pendia sobre o mercenário quando a rapariga (com que passara a noite) soube que era um mercenário. “Diz-me qual é o teu arsenal? É letal?” O mercenário virou-se para o outro lado da cama e fingia estar a dormir. Fingia: a sua maior arte, ser mercenário.

A rapariga ouviu o silêncio por minutos a eito. Pareciam horas. Ainda não estava em si. Passara a noite com um mercenário. Sentia-se imunda, coberta por toda a imundície que cobre um mercenário. Como se ela tivesse sido investida na condição de mercenária em desvirtude dos corpos que se haviam fundido. Nem a ideia de ser involuntariamente mercenária a sossegava. Abanou o mercenário e voltou a perguntar: “Diz-me qual é o teu arsenal? É letal?” E acrescentou: “Diz-me quando mataste a última pessoa. Diz-me!”

O mercenário levantou-se lentamente da cama e vestiu-se. Para quem está a soldo de quem pagar melhor, aquele pudor era paradoxal. O mercenário fez questão de esconder a nudez antes de se preparar para as respostas que ela queria. Ela ficou petrificada: o mercenário pôs um olhar assassino e, de repente, passou pela cabeça da rapariga que o mercenário quisesse usar o seu arsenal de violência inumana nela. “Tem calma. Não te vou fazer mal”, reagiu o mercenário ao vê-la estarrecida.

As palavras soaram a uma sinceridade que não quadrava com a linhagem de um mercenário. A rapariga sentia que estava segura. O mercenário tinha mais alguma coisa a dizer. Sentia-o; ele hesitou, demorou-se no silêncio, hesitou outra vez, mas queria dizer. É da natureza dos mercenários esconderem a alma do seu negócio. Esconderem até os mais fundos vestígios da alma. O mercenário estava a lutar contra a sua natureza. Mas disse:

Eu sou um mercenário, mas não é desses mercenários malvados que estás a pensar. Qual é o meu arsenal, perguntas; quando matei a última vítima que me veio parar às mãos, perguntas. Não tenho armas comigo. Armas que usam munições, daquelas que trespassam os corpos das vítimas. Nunca matei ninguém. Sim, estou a soldo. Constantemente a soldo. De quem me pagar mais pelas encomendas feitas. Que encomendas – adivinho que perguntas, mal me ouviste a dizê-lo. Sou um perito contratado a peso de ouro para dar pareceres ao governo, às empresas, às pessoas que tiverem sido atirados para um conflito. Eu sou aquele que torce o sentido das palavras para dizer uma coisa e o seu contrário. Sim, podes-me colocar ao mesmo nível das autênticas meretrizes que se passeiam nos prostíbulos. Eu sou aquele que aluga a consciência por um rédito com muitos dígitos. Aquele que prescindiu da consciência em nome da ganância. Eu sou assim. Sou eu. Autenticamente mercenário. A soldo de quem vier, menos de mim. Eu como eu, antes do que sou mercenário, já não existo há muito tempo.

28.3.23

Desobedeço

Unknown Mortal Orchestra, “The Garden”, in https://www.youtube.com/watch?v=JlkszyIgoBU

O copo raso desembacia o entardecer atordoado. Os dedos cortam a espuma da cerveja, que transborda. Em tudo há remanescências, que estão a mais. Combina-se a sua inutilidade com um gesto implacável que as destina à indiferença. Os dedos molhados são enxutos num guardanapo de papel com o logotipo da esplanada. A Primavera compôs-se num daqueles dias que inauguram o sol e deixam na pele um leve travo às temperaturas que pedem a pele à mostra. Parece um dia que não tem vergonha. 

Ao fundo, a televisão passa um canal de notícias contínuas. O costume: sangue derramado algures; a bestialidade que destoa a dignidade das vidas; a hipocrisia, o bel-canto da política; uns fait divers sobre mundanidades e as personagens habitualmente atreitas às mundanidades, emulsionando a sua frivolidade; a entorse das coisas, com a importância condensada em irrelevâncias e o que devia contar a ser atirado para a gramática do silêncio. Os mesmos rostos, a mesma sintaxe de um lugar que se contamina com a sua própria existência. Um logro inteiro. E nós, máscaras por inteiro, passivamente dando parte desta cumplicidade. Mecenas da nossa própria irrelevância. 

Talvez gostemos de ser irrelevantes. É o preço da serenidade.

Não sei se apetece ser figura de corpo presente num palco onde a despertença ganha forma. Não sei se é capitulação o exílio interior como resposta: um ensimesmar, é certo, mas uma fuga para o interior que se distancia das regras do jogo, da impetuosidade gratuita que acasala com a desconfiança metódica e a boçalidade consequente, de um jogo de sombras que anula o paradeiro dos sentidos. Talvez ainda vá a tempo de fazer de conta que por dentro de mim é tudo diferente, mesmo que não se encontrem paradigmas no meu perímetro.

Desobedeço: solto o arnês, vou em demanda de apeadeiros que não estão no mapa. Arremeto contra os especiosos intérpretes das coisas como elas são sistematizadas, por sua renúncia. Desobedeço e sei que não ando longe de ser (considerado) pária. Não me importo. Ser pária neste lugar a que apetece despertencer é linhagem que não envergonha.

Desobedeço às convenções, desobedeço dos manuais de instruções, coloco-me nos antípodas das personagens que dão a cara pelo sistema atavicamente enraizado. Prefiro uma sucessão de curtas-metragens, mesmo que não exista um fio condutor entre elas. Prefiro uma cordilheira de imprevistos, santuários onde se certificam os paradoxos, as perguntas que são evitadas pelos meirinhos que ostentam à lapela as comendas que só podem ser ostentadas pelos que dizem falar em nosso nome. Prefiro o xisto, austero, em vez da flamância de azulejos que tão depressa se estilhaçam.

Desobedeço, para não desobedecer ao magma que acorda num levantamento sem nome.

27.3.23

As estátuas não morrem de pé

Tó Trips, “Amor em Tempos Fodidos”, in https://www.youtube.com/watch?v=4bfzeHGRPKQ

O avô esperava a tarde no jardim. Esperava que fosse hora de jantar, para ir a nossa casa jantar em silêncio, mostrando uma impassibilidade sofrida que, todavia, não era uma máscara de dor. Durante o dia, não queria ser conselheiro da solidão que invadira a casa depois de a avó ter morrido. Não é que fosse passar a tarde num banco do jardim para esconjurar a solidão. Mas na casa era pior. Sempre se habituara a que a casa fosse um trinómio: a avó, ele e a casa (por esta ordem de importância). Agora, a casa estava amputada. Deixou de ter marés e flores e poesia espalhada em pequenos papelinhos amarelos. A casa era impossível durante o dia.

Havia outros velhos no jardim. Uns, como o avô, exorcizavam alguma forma de solidão, vagueando vagarosamente pelo jardim, como se o tempo resistisse à sua andadura. Outros, em matilha, vozeando sem cerimónias, jogando cartas ou discutindo a atualidade folheada nas páginas dos jornais. O avô fugia desse alvoroço. Não queria disfarçar a solidão. Não queria que os outros velhos fossem um elixir para o luto de que não conseguia fugir. Não queria exilar-se de si mesmo.

Os netos aconselhavam a vida porque tinham medo que este seu desviver avivasse os deuses da morte. O avô não se deixava convencer: “a morte da avó foi o meu luto principal, mas não foi o primeiro. Esse foi quando tive de me reformar.” E o avô, que em novo sempre dissera que não se iria encerrar num luto labiríntico se ficasse depois da avó, e que jurara não tatuar o corpo com roupas escuras porque sempre fora contra os maus costumes que compunham uma sociedade mesquinha, acabou a fazer o contrário de tudo o que sempre prometera não fazer. Parecia que desistira da vida – como se lhe tivessem arrancado uma parte do coração e o sangue parasse de circular.

Um dia, uma das netas quis saber que memórias ele tinha da avó. Ele desconversou. Os silêncios que entrecortaram os monossílabos arrancados a ferros eram a expressão do seu estado de espírito (talvez). Ou podia ser que quisesse conservar-se como o único guardião dessas memórias, sendo seu o dever de honrar a cumplicidade que vivera com a avó. À medida que o avô desconversava, a neta parou de fazer perguntas. Limitou-se a observar os olhos cansados do avô, os olhos perdidos algures, como se na sua errância o avô encontrasse um emoliente para a solidão. Numa golfada de sílabas milimetricamente medidas, sossegou a neta: “A última coisa que quero é que fiques preocupada comigo. A solidão não é um archote que incendeia as veias. Sim, sinto solidão. Mas é a continuação do amor pela tua avó.”

Nesse dia, a neta descobriu que se as árvores morrem de pé, as estátuas são feitas à prova de morte. 

24.3.23

Aqui não há ursos (short stories #420)

 

Protomartyr, “Make Way”, in https://www.youtube.com/watch?v=wc2bqR33RNM

          Bêbados, os estroinas investiam contra o mobiliário urbano. Afinal, ao mobiliário urbano são assacados todos os males (à falta do esquecimento, caso em que a culpa seria devolvida ao suspeito natural, o capitalismo). Assoavam-se às ramagens das árvores, que precisavam, mais do que nunca, da fotossíntese que só seria agenda horas depois, quando o sol destronasse os vultos da noite. Entretanto, mais um bar aberto, em violação das posturas municipais que determinavam o prazo de validade da folia. Entraram. Beberam umas bebidas brancas (antes que os novos verificadores da língua aceitável não atirem a designação para canto, acusada de manifesto racismo). Continuaram a desordem, descombinados com a polícia que fazia rondas fora do perímetro do bardinos. Pararam diante de um cartaz avantajado com o rosto do primeiro-ministro em pose de curador de todos nós – o autêntico timoneiro. Leram, va-ga-ro-sa-men-te (o álcool embacia as dioptrias e estica as sílabas), o mote: “comigo, estão em boas mãos”. Não lhes ocorreu a má colocação da vírgula; se estivessem sóbrios, um deles (o mais aborrecido no zelo pelo bom tratamento do idioma falado e escrito) não deixaria escapar a derrapagem gramatical e diria não estranhar, pois sua excelência tropeça na sintaxe, na gramática e na articulação de sílabas (na sua mania de ser austero com as sílabas, metendo-as por atalhos que encurtam a duração das palavras). Urinaram à frente do cartaz messiânico. Era mais do que uma metáfora. Aquela era uma mija literal para o sujeito do cartaz. “Ai se a polícia viesse agora” – atirou um dos boémios. “Íamos presos por isto?”, respondeu com uma pergunta um dos outros. “Claro. Atentado ao pudor.” “De quem? De sua excelência?” Já só foram a tempo de parar a função quando esgotaram o stock armazenado nas bexigas (e se era tanto!). “Não tenham medo, companheiros! Aqui não há ursos!”

23.3.23

O princípio geral da gorjeta “sugerida” – e de como não apetece ser generoso

Simple Minds, “Someone, Somewhere in Summertime”, in https://www.youtube.com/watch?v=EKq-NCvBzuo

Às vezes, a vontade que cada um tem como sua deve ser previamente industriada. Se ficamos na dúvida e a vontade encalha na indecisão, haja quem de fora dê uma sugestão que resolva o dilema ou destrave as trevas que sufocam a vontade. A sugestão vinda de fora termina o bloqueio que impede a vontade e nós, que às vezes caímos no limbo porque não conseguimos apurar a vontade que a vontade tem, agradecemos.

Tome-se o exemplo de alguns restaurantes: quando apresentam a conta do que foi consumido, acrescentam uma linha onde sugerem a gratificação. O empregado que traz a fatura informa, educadamente, que o cliente tem o direito de não concordar com a gratificação sugerida.

Esta mudança de hábitos sociais é socialismo em ação. Os socialistas é que professam o credo na engenharia social, acreditando que nós, rebanho quase tresmalhado, precisamos de um guru superior que nos conduza e por nós desfaça as dúvidas, existenciais e de outro jaez, que nos assaltam. Se não sabemos quanto deixar de gratificação num restaurante, fiquemos sossegados que o socialismo em ação entrou nos restaurantes e decide por nós.

Dirão, em coro com o empregado de mesa que, educadamente, informa que não somos obrigados a aceitar a gratificação sugerida, que é apenas uma sugestão. E as sugestões, não sendo comandos imperativos, deixam à vontade da outra pessoa a aceitação ou a recusa. O problema está nas entrelinhas. Há sugestões que soam a comandos imperativos, sob pena de a recusa ficar mal vista – e há quem se inquiete com a hipótese de ficar mal visto aos olhos dos outros, mesmo que sejam desconhecidos. São os que sabem viver em comunidade e têm consciência coletiva. A alternativa é acicatar o misantropo que há em nós. Indiferentes ao julgamento dos outros, mesmo que seja depreciativo, reagimos por antinomia: recusamos a sugestão e deixamos uma gratificação de outro valor, inferior ao recomendado. Ou nem deixamos gratificação, porque consideramos que todo o serviço prestado, que até pode ter sido de primeira classe, perdeu o merecimento da gratificação pela forma intrusiva como a sugestão foi apresentada. Somos empurrados para a negação do altruísta que há em nós. Ele há coisas que são contraproducentes.

Não se pode colocar de lado a hipótese de a sugestão ser entendida como a definição da vontade a partir do exterior, o que não é compatível com a autonomia que é intrínseca à vontade de cada um. Nem se pode excluir a possibilidade de haver muitas pessoas a deixarem vir ao de cima o misantropo escondido, recusando a “boa vontade” do socialismo aplicado aos costumes sociais nos restaurantes.

Para prevenir esse risco, um dia destes a gratificação obrigatória de 10% nos restaurantes passa a letra de lei. Deve ser o próximo passo na interminável peregrinação para uma sociedade perfeita, com a bênção, e generosa, dos socialistas.

22.3.23

Jurisdição

Gorillaz ft. Stevie Nicks, “Oil”, in https://www.youtube.com/watch?v=lK5HVlcs0og

Os gatos machos – outra vez os gatos; ainda e sempre os gatos – marcam território por onde passam. Aninham-se sobre as mãos, levantando o quadril, apontam a cauda na vertical e disparam uns esguichos de urina contra uma superfície que faz as vezes de marco geodésico. Os gatos, quando delimitam o território que assim julgam ser seu exclusivo, chamam uma jurisdição. 

Os outros gatos que por ali venham sabem que um compadre já definiu as fronteiras do seu território. O gato forasteiro tem duas hipóteses: sai daquele lugar, para não participar numa guerra (os gatos, alguns gatos, também sabem que as guerras são espúrias); se o gato for belicoso, ou se decidir que aquele território deve ficar sob a sua chancela, descarrega urina sobre a urina anterior, desafiando o gato precedente. 

Para o primeiro gato, há muitos territórios baldios à espera de jurisdição. Mas este gato não pode adivinhar o futuro; e o futuro pode trazer outros rivais a quererem desafiá-lo. Nunca se pode dar por adquirido que um lugar ermo o será para sempre. Para o segundo gato, há territórios mais apetecíveis (que ele sabe serem habitados por gatas, que um dia destes entram no cio), compensando fixar a sua matriz para poder exercer um domínio que afaste os rivais. Este gato tem de estar preparado para a natureza contenciosa da jurisdição. O gato que antes foi suserano pode não aprovar a ousadia, vendendo cara a jurisdição. Outros gatos poderão entender que aquele território tem o valor do ouro, aprestando-se a exercer a jurisdição. O território pode tornar-se um demorado campo de batalha.

O equívoco dos gatos é partirem de uma noção de posse do território que é um barril de pólvora, caso outros gatos coabitem o mesmo lugar ou as imediações. A exclusividade territorial está nos antípodas do comportamento dos gatos quando uma gata entra no cio: a gata oferece-se a todos os gatos e estes não se importam com a concorrência dos rivais. A sociologia sexual dos gatos é a negação da monogamia. As gatas são poliândricas. Nenhum gato tem o topete de exigir a exclusividade. O que os bons costumes (humanos) têm como promiscuidade é uma caução da paz entre os pretendentes rivais, que esperam pacientemente pela sua vez enquanto a gata sacia os gatos em fila de espera. 

A imagem é dura, para os costumes humanos conservadores e antropocêntricos. O que lhes escapa é a abertura de espírito para entender como uma lição dos gatos ensina que o sexo pode prevenir a guerra. Oxalá os humanos soubessem aprender a lição dos gatos. E devolvessem a jurisdição à sua castradora feição, reduzindo-a a um nada. 

Entre promiscuidade e guerra, quem prefere a guerra?

21.3.23

Marrar nas ossadas não ressuscita o morto

Dead Combo, “Mr. Eastwood” (live in Madrid), in https://www.youtube.com/watch?v=w2Y0qjK8qlY

Marrão, o bode rebelde atravessava as estepes até encontrar arbustos apetitosos. Os pastores das redondezas sabiam que era inútil atrelar o bode. Ele conseguia sempre libertar-se. Ao menos, cumpria uma função do agrado dos pastores: era um reprodutor exímio, não falhando uma cabra com cio, apesar de se aproximar da terceira idade (segundo a métrica dos bovídeos). Mais a mais, as ninhadas fecundadas pelo bode rebelde davam espécimes de qualidade superior.

Ai de quem se chegasse ao bode marrão. Ele investia com a sua armadura e se os ousados não batessem em retirada com a celeridade própria de quem tem bons e rápidos instintos, ele era ferida incisiva ou contusão que levava umas semanas a sarar. 

Um dia, o bode marrão, tresmalhado como era seu apanágio, perdeu-se no cemitério de uma aldeia vizinha. Havia umas flores caducas espalhadas pelas sepulturas, já mais arbustos do que flores, tão secas estavam. O bode, que percorreu sabe-se lá quantas léguas até chegar a um lugar tão remoto, tinha de almoçar. Circulava vagarosamente entre os jazigos, codeando ali e acolá. A aldeia estava quase deserta, erma como era, e durante muito tempo o bode vagueou pelo cemitério sem ser importunado.

Entre duas dentadas em flores diferentes, o bode marrão quase caía numa sepultura a céu aberto. Era uma cova que ainda não tinha sido fechada, o coveiro ficara doente naquele dia e não pudera completar a empreitada da véspera. Ninguém ficou triste com as ossadas a céu aberto: o féretro já teria uns anos de terra sobre si e toda a carne e tendões e demais matéria não óssea já tinham sido devorados há muito pela bicheza que tem subterrâneo habitat. Ninguém, ou quase, podia reclamar contra o coveiro. Eram pouco mais de dez os habitantes da aldeola, todos anciãos, todos refugiados de um dia de Inverno a destempo. Só iam ao cemitério quando um deles emagrecia o contingente de habitantes. 

Também ninguém deu conta do bode que começou a marrar nas ossadas deitadas ao acaso sobre a cova a céu aberto. O bode não sabia o que fazia. Bêbado, acabado de chegar de uma aldeia vizinha onde uma tasca resistia à desertificação, um velho fez um desvio pelo cemitério. Não sabia por que motivo foi parar ao cemitério. Estava sentado no degrau de um jazigo a acabar a garrafa que trouxera por companhia na caminhada desde a aldeia vizinha. Sentiu um ruído atrás de si, alguém, não visível, escavava dentro de uma cova que estava por fechar. Aproximou-se, cambaleando. Viu o bode a marrar nas ossadas do seu conhecido (um qualquer, que as ossadas são muito democráticas). Inebriado, julgou, por um instante, que o bode era a personificação de deus descido à terra e que as suas marradas cuidariam de ressuscitar o homem ali depositado.

Aproximou-se um pouco mais, para apreciar o bode que seria a personificação de deus. Escorregou e caiu para a mesma cova onde conviviam o bode marrão e as ossadas do morto. Sentindo-se atacado, o bode atacou o bêbado indefeso. A cova foi o destino de dois cadáveres de diferentes safras. E ficou provado o que o velho bêbado já não foi a tempo de atestar: o bode, se personificava alguém, era o diabo. E as suas marradas não eram a prescrição para a ressuscitação, antes pelo contrário.

20.3.23

O marinheiro cheio de testosterona

The Chemical Brothers, “No Reason”, in https://www.youtube.com/watch?v=Jm_WdaHBdlg

O Senhor Almirante das vacinas, protocandidato à presidência da república, gosta de soltar a trela ao discurso musculado. Está convencido – e não será por erro de diagnóstico, o que entristece ainda mais – que o povo simpatiza com o estilo. 

Há uma semanas, até a marinha espanhola apanhou umas vergastadas verbais do Senhor Almirante porque, de acordo com sua excelência, os espanhóis foram negligentes na perseguição de traficantes de droga que andam pelo Guadiana e pelo mar que chega à embocadura do rio. Há dias, o Senhor Almirante atirou-se à guarnição (não é tripulação – aprendemos) de uma fragata estacionada na Madeira que se recusou a embarcar numa missão de vigilância de um navio russo que passeava pelas águas territoriais. O Senhor Almirante advertiu que a mão será pesada para os indisciplinados. Que interessa que já haja sentença antes de o processo disciplinar ter sido instruído e ter terminado? O Senhor Almirante quer, os subordinados cumprem. Às malvas, o Estado de direito.

O Senhor Almirante também falou com a dureza de quem não tolera atos de indisciplina, explicando que a disciplina é o cimento da marinha. “Não há forças armadas sem disciplina”, recordou, em jeito de reprimenda para os destinatários diretos (os marinheiros insubmissos) e para os destinatários indiretos, todos nós, cidadãos e eleitores, para ficarmos em sentido se o quisermos como presidente da futura república. 

Andamos atónitos com a resistência da cúpula da igreja, que adia e continua a adiar a suspensão de curas associados a casos de pedofilia, com a igreja a avisar que tem leis próprias. Como se fosse uma autoridade dentro do Estado que passa à margem da autoridade do Estado; e agora damos de caras com a pose inexcedível do Senhor Almirante, que acredita que as regras do Estado de direito não se aplicam dentro da marinha, como se a marinha tivesse os seus códigos exclusivos e os marinheiros direitos de cidadania diminuídos. 

Mas o Senhor Almirante falou para dentro sabendo que estava a falar para fora. Ainda não negou que seja candidato às eleições presidenciais e, adivinha-se a partir deste posto de observação, deve ser atravessado por excitações carnais de cada vez que lê “sondagens” que o colocam na rampa para a presidência da república. Como ainda não veio dizer que é apenas da tropa e não tem ambições políticas, é ele que ateia estas “sondagens” e a sua pose presidenciável. Por isso, não é suficiente falar às tropas; tem de falar para o seu potencial eleitorado. O Senhor Almirante, que não padece de falta de inteligência, sabe que este povo ainda tem saudades de líderes com punho de ferro e que esse povo corta transversalmente eleitorados de vários partidos. O Senhor Almirante gosta de ostentar a pose de disciplinador, sabendo que há quem goste de ser disciplinado. Aproveita as oportunidades para debitar declarações num embrulho (que devia ser) atávico. 

As ambições políticas, se dúvidas sobre elas houvesse, foram confirmadas quando o Senhor Almirante descobriu o dedo do partido comunista na sublevação de parte da guarnição da fragata. Aproveitando para dar uma alfinetada que só os distraídos não compreenderam (um dia destes, a guarnição vota em reunião geral, de braço no ar, se embarca numa missão – disse, com ironia mal disfarçada), já mandou dizer que o PC está a boicotar a sua excelsa pessoa. 

O Senhor Almirante devia ter noção. Se for verdade que as ambições políticas lhe correm no sangue, devia contratar uma agência de comunicação que temperasse a sua incontinência verbal e amaciasse o amadorismo político. Os comunistas têm direito a existir e a fazer política à sua maneira. Como alguns membros da guarnição têm o direito (apesar do desgosto do Senhor Almirante) de simpatizar com o PC, ou até de serem os idiotas úteis deste partido, por mais que isso constitua desprazer para o Senhor Almirante. 

Este país ainda é uma democracia. Talvez esteja a caminho de ser uma democracia amesquinhada e entortada se o discurso musculado e a prepotência do Senhor Almirante fizerem escola, subirem nas “sondagens” e atraírem, em sede de eleições, a maioria do eleitorado.

Deste posto de observação, digo: oxalá se possa dizer, a partir destes episódios de linguagem de caserna, musculada e aparentemente cheia de testosterona, paz ao cadáver político do Senhor Almirante. 

17.3.23

Cleópatra tinha um nariz sensível à mostarda? (short stories #419)

Peter Murphy, “Deep Ocean Vast Sea”, in https://www.youtube.com/watch?v=539fmHhmDQc

          Exumada a ossatura de Cleópatra, os ossos do nariz foram meticulosamente anatomizados. Estava em causa a confirmação do mito sobre o nariz de Cleópatra. De Cleópatra se dizia ser irascível. Tinha um nariz adunco que, fez-se constar, explica a sedução que exerceu sobre, por exemplo, Júlio César. Ora, as metáforas não assomam à superfície por acaso. Quando dizemos de alguém que a mostarda (lhe) subiu ao nariz, estamos perante uma pessoa que se abespinha com facilidade – alguém que tem um mau feitio que afasta as pessoas. Os peritos queriam apurar se havia resíduos de mostarda na ossatura nasal de Cleópatra. Usaram a tecnologia mais avançada. Não conseguiram chegar a resultados conclusivos. Depois descobriu-se: os peritos tinham instruções superiores para desmentir o mito do nariz de Cleópatra. Não está na moda do politicamente correto que de uma mulher se diga que traz consigo um feitio difícil, que é arisca. E, muito embora Cleópatra esteja defunta há mais de vinte séculos, não se levantando a possibilidade de um morto (nem que o seja há um minuto) se incomodar com rótulos que lhe sejam pespegados, a linguagem imperativa, associada aos dogmas que ensinam o que pode ser dito e o que está banido do espaço público, manda que se desfaça o mito que atira o ultraje do mau feitio para o sexo feminino. Assim como assim, quando Cleópatra era viva, não há notícia que a mostarda fosse um molho ou que fosse um condimento usado na gastronomia dos faraós. Eis o desmentido formal do mito: das mulheres não se diga que lhes sobe a mostarda ao nariz, porque o seminal nariz feminino não chegou a conviver com a mostarda. Os homens, esses sim, é que são penhores do feitio irascível. Apesar da desaprovação das generalizações, que matam de tédio qualquer mortal.

16.3.23

O sinaleiro demiurgo (dramaturgia)

First Breath After Coma ft. Noiserv, “Don’t Say Hi If You Don’t Have Time for a Nice Goodbye” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=HrkMusUacJA

               [Monólogo]

A vida é uma curta-metragem. Não seja a métrica imoderada a asfixia das ilusões, ficando o corpo estático à mercê das circunstâncias que se jogam no exterior da vontade. Uma curta-metragem pode representar a ignorância do tempo, ou a indigência do medo. Quando somos velhos e estamos a um degrau da morte, ninguém dirá que a vida foi uma longa-metragem. Não são os arrependimentos bolçados que orquestram a nova esquadria do tempo. Parece que alguém se manifesta como um pirata que nos absolve do medo. A paga é a instrução para sabermos receber os braços lânguidos da morte, como se a vida deixasse de nos pertencer – como se ela nunca nos tivesse pertencido.

[Um trovão anuncia a tempestade inaugural. Os olhos desviam-se para a janela e o corpo levanta-se, trémulo. Os raios que precedem os trovões ramificam-se no céu, emprestando cores à noite que deixou de ser monopólio.]

As pontes que atravessam os rios falam um idioma próprio. Quem as tece não precisa de saber esse idioma. Quando foram levantadas, os operários e os engenheiros não sabiam das vidas que seriam servidas pelas pontes. Com a sua arte, deram vida a muitas vidas que seriam abandonadas ao desmazelo de quem não povoa outros lugares. São os diferentes lugares que exaltam as vidas que os visitam. As vidas são como vírgulas que não fazem a diferença. Antepõem-se às palavras que dirimem o ónus da insignificância. É como as vidas. Umas tornam-se visíveis: ora merecem as loas, ora se prestam ao enxovalho. Sobem a palco e são sindicadas pelo olhar inquisitivo do forasteiro (os outros são sempre os forasteiros). Outras atravessam os pântanos e as paisagens bucólicas sem serem inventariadas. Todas estão destinadas a deixarem de ser quando a morte se abater sobre elas. Um cínico embaixador do desmedo insurge-se contra a apatia geral e protesta que a vida devia ser imortal. Teve de legitimar a pronúncia: falava através das arestas vivas de uma metáfora.

[A manhã espreita entre a penumbra que teima em se adiar.]

A insónia percorreu a noite inteira. Os pensamentos desfilavam, atravessando a durabilidade da noite – como se a noite fosse sua procuradora e ele, mecenas das interrogações, não quisesse deixar um legado para memória futura. As vidas são vividas enquanto se adestram na antítese da morte, mas não era preciso escolher a frivolidade dos lugares-comuns. Não sabia mais que palavras coreografar para se convencer que há sempre um posfácio a escrever, uma elegia emoldurada numa boca alheia. Um elogio de que já não somos testemunhas. 

[O ocaso da manhã serve um nevoeiro tardio na embocadura do rio. As aves refugiam-se nos ninhos, como se temessem que o nevoeiro as engolisse. Não se considerasse o nevoeiro fundente uma espada a rematar vidas em espera: no avesso do nevoeiro situa-se um lugar demiúrgico. Será nosso, mal o nevoeiro seja deposto.]

Cada dia ultrapassado não era uma proeza. Era apenas um dia, uma página deitada num livro ora aberto, ora fechado, à custa do que custa verter o olhar na matéria de que eram feitos os tempos conhecidos. Cada dia era a expressão de uma teimosia. Da teimosia de trazer a vida no sopé da falésia, sabendo que o precipício é intransigente com as distrações e com os que se abandonam a uma errância sem apeadeiro. 

Era arriscado andar por ali sem arnês.

15.3.23

MCMXCI

 

Dolores Forever, “Conversations With Strangers”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y3rHdaRiRoY

O tempo tendeiro, nevoeiro pela berma da estrada, e toda a nostalgia encerrada numa fortaleza, inacessível. Era imprevidente o golpear da memória no tempo presente (alguém dizia). Outros, em maioria, refugiavam-se nos lençóis da memória, como se ela os tutelasse e eles já não tivessem nenhuma maré para dar ao presente.

Uma recusa parcial apoderava-se da vontade que devia ser conjugada no tempo presente. Mas havia um vício inenarrável que atirava o olhar para as masmorras onde o tempo passado se conjeturava: era como se apenas o passado fosse compulsado – e nisso havia uma verdade irrefutável: só se pode inventariar esse tempo, o presente é vivido nesse breve lapso e logo se extingue, ou se não se extingue a sua efemeridade condena-o a ser passado sem que seja possível dar conta disso; o futuro não é sindicável.

Contudo, havia uma seita numerosa que vivia agarrada às bainhas do pretérito. Convocava as memórias, como se elas fossem a costura do presente. Havia quem dissesse, de forma cautelar, que não podemos oprimir o passado, deixando-o sob uma pedra que o oculta. Advertiam: se não honrarmos o passado que somos, não somos nada, somos a negação do presente que se extingue no futuro em que se torna. E voltavam-se para trás, como se fossem guiados através de um retrovisor e tudo fosse a repetição do que já tivera moldura no passado. Deles se dizia serem contumazes ao presente. Não se importavam; não se importavam muito com o presente, a não ser no que o presente fosse efémera recompensa e indesejável pesar.  

Os calendários estavam desarrumados em cima do estirador. Ao acaso, folheando as páginas para resgatar episódios avulsos, como se esse fosse o conceito do presente. Parou na agenda encimada, em letras douradas, pela data em numeração romana: MCMXCI. As memórias, em viagem vertiginosa, bolçavam uma sucessão de acontecimentos e desacontecimentos. Os dedos passavam pelas páginas da agenda e sentiam pedras pontiagudas, pedaços de pétalas perfumadas que ficaram mumificadas entre duas páginas, estrofes inacabadas, intenções que ficaram sem paradeiro, outras adiadas até serem possíveis, pedaços de carne exaurida que açambarcavam o tempo presente com a nostalgia do passado. E os dias passavam, indiferentes, com a intendência de quem se declarava omisso aos dias correntes. Uma contumácia que só podia ter punição interior.

MCMXCI já acontecera. Se ao menos o convencessem que a contagem é feita para a frente.

14.3.23

Quando perguntaram o que seria ser quando fosse grande, respondeu: “Dom”

Clan of Xymox, “Stranger”, in https://www.youtube.com/watch?v=TuKgAj9m-Fc

Ai se a monarquia pudesse fazer o tempo andar para trás – ou se o tempo, variável independente, se cansasse da modernidade e mandasse nos costumes, mandando restaurar a velha lógica conservadora. Pensava que era mais fácil envergar um título nobiliárquico. Desde que bebera Dom Perignon, era uma ideia que não lhe saía da cabeça. (Mas podia ser das borbulhas que descem na companhia do champanhe.)

Sempre foi diferente dos outros. Desde a escola, quando debitava as datas importantes da História de trás para a frente e era capaz de indicar no mapa todas as praças-fortes que foram sendo lavra dos descobrimentos. No quarto, foi enchendo as paredes com quadros dos reis, debruados com requintadas molduras que exigiam os rococós do costume. Os colegas colavam cartazes de estrelas efémeras da música (ou estrelas da música efémera). Os que descobriam as hormonas mais cedo, não se envergonhavam de rasgar as páginas centrais de revistas no mínimo eróticas, fazendo do quarto o seu imaginário lúbrico. Ele ainda não sabia como era o seu corpo nu.

Mais tarde, estudante universitário e cheio de iniciativa, deixou crescer um garboso bigode farfalhudo. (A farfalha custou quase dois anos de paciência, que as pilosidades cresciam com vagar.) Vestia como os gentleman ingleses e abusava de forças de expressão entoadas num inglês com sotaque impecavelmente nativo. Foi da sua iniciativa a criação de movimentos que resgatavam as tradições e juravam uma portugalidade que estava a ser constantemente enxovalhada pelas excrescências dos novos e madraços tempos e dos soezes que colonizaram o poder. 

Ostentava um distinto título nobiliárquico: visconde do Sorraia, inventado por si – assim como assim, como não havia certificação dos títulos nobiliárquicos, por terem sido banidos pelo republicanismo pagão, paradoxalmente tornava-se mais fácil pespegar um título nobiliárquico ao nome. Se outras fossem as modas, e se os títulos dos nobres ainda tivessem valimento, ele não passaria da cepa-torta. Foi o laicismo republicano que salvou as suas pretensões. Nunca reconheceu esta dívida aos republicanos.

Ainda se lembra, quando era pequeno mas já formara alguma consciência política, um tio (comunista) perguntou o que queria ser quando chegasse a grande. Respondeu, sem que o tio tivesse tempo de molhar os lábios no uísque burguês: 

- Dom. Quero que me tratem por Dom.

O tio, que já acusava uma taxa de alcoolémia que dava direito a ficar sem carta de condução, baralhado pelo catecismo marxista-leninista a que jurou fidelidade eterna (ele não sabia que não se devia usar em público a palavra “sempre”), devolveu em pergunta:

Mas queres ter um dom de quê? Malabarista? Pescador? Operário? Professor? Metalúrgico?

E o petiz, ofendido por entender que a pergunta vinha carregada de ironia, desferiu um pontapé nas canelas do tio e, enquanto este se debatia com dores (mais por ter vertido o uísque de primeira do que pela contusão na canela), disparou: 

- É para aprenderes, ó cabrão comunista.

Foi o início da sua carreira de arruaceiro, sem algum dia entender que a arruaça não era compatível com os punhos de renda que reclamava a seu favor. Um dia, já próximo da quinta década de vida e ainda fiel à monarquia (uma qualquer), alguém quis fazer ver a contradição entre ser nobre e andar constantemente em motins. Não convencido – estava, pelo contrário, convencido que era uma armadilha para o convencer a deixar de ser empedernidamente conservador – o Dom a que ninguém chamava Dom respondeu: 

- É preciso estar de atalaia. Só assim me consigo defender do acosso constante, de ser apanhado num canto e de ter uma multidão a rir-se de mim, de uns mastins a soldo da comandita habitual que me querer convencer à força a deixar de ser o que sou. Pode ser que aprendam com a violência. Não me desafiem, que ainda hoje treino boxe e as artes marciais não me são estranhas. Na minha conta, a meu favor, já tenho uns quantos queixos partidos e cabeças esmurradas. Já que não me devolvem a monarquia.


13.3.23

Pátio dos castigos

First Breath After Coma, “Salty Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=tNVOosRxpEw

A pontualidade não era apreciada. Os monges desabitavam relógios e só espreitavam o sol, medindo meticulosamente o ângulo do sol. Se houvesse regras era pior: seriam em maior número os apanhados em falta, a contravenção não podendo ficar isenta de punição.  

Um dia, apareceu uma garrafa no pátio. Uma garrafa vazia. Tinha sinais de desgaste – alguém bebera por ela, não era preciso andar à procura de impressões digitais. Pudera ser que um dos monges não cumpriu os votos de austeridade e se abraçou à bebida? Foi nomeado entre eles, por sorteio, um instrutor do ocorrido. Era preciso saber como a garrafa foi parar ao pátio onde se cominavam os castigos. Era preciso saber quem tivera a ousadia de quebrar os votos firmados pela casta. A provocação não podia cair em saco roto.

Ninguém quis saber se o instrutor era o infrator em pessoa. Todos partiram de outro pressuposto: para ser nomeado instrutor, o monge não podia ter cometido a infração. O dever de lealdade exigia que o instrutor se autodenunciasse, rematando com brevidade o processo de intenções. Não era possível o instrutor e o infrator serem uma e a mesma pessoa: deus não anda a dormir e moveu as suas influências para não se dar aquela coincidência. 

A ironia era a garrafa ter descido ao pátio dos castigos. Quem a arrojou sabia do nome do pátio e também sabia que o nome não é por acaso ou um jogo metafórico. Dizia-se: naquele pátio foram cominados os castigos mais desumanos, antes de terem sido proscritos pelas autoridades eclesiásticas. Espreitar pelo buraco da modernidade era uma pulsão para alguns monges, que a escondiam. Os mais velhos e os mais puristas não alijavam o dogmatismo. Os mais novos eram olhados com desconfiança. Foi uma geração à frente dos novos novos que se afidalgou, cimentando o conservadorismo que sempre fora ostentação descontrolada dos radicais. 

Ninguém contara, tão confiantes na supervisão divina de quem tinha intendência no processo: o instrutor confessou, a meio de uma boémia às escondidas, que ele foi o autor da desatenção, foi ele que trouxe a garrafa e bebeu o seu conteúdo numa noite. Confessou-o a um par que era o seu confessor. Estando preso ao dever de reserva sobre a matéria exposta em confissão, o confessor não pôde fazer nada. Por mais que lhe apetecesse denunciar o logro, vingou um dever superior: os pares não se denunciam uns aos outros, deixavam a empreitada para um superior ou para alguém de fora com provas dadas que fosse recrutado para desmentir os podres da congregação.

Nunca se soube a origem toponímica do pátio dos castigos. Era mais fácil que fosse uma metonímia do que um lugar que viu sangue derramado, cabeças e ossos partidos, cicatrizes com o passar do tempo. E a toda a mentira redonda, deus, distraidamente, condescendia. Tornando-se procurador da mentira.

10.3.23

Descontagem

Ty Segall and the Freedom Band, “Whisper” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=VID3I3rYU6k

Acabou a tirania dos números – disseste. 

Já não contam as estatísticas. Deixou de haver um navio cheio de números a traduzir intenções. As noites não aparecem pintadas por equações que ninguém consegue resolver. Dizias: agora a cabalística ficou exausta; os números apenas significam a sua numérica expressão, perderam toda a ligação com as palavras. Os números deixaram de ser generais prussianos, austeros e implacáveis com as nossas desatenções. Agora – disseste – os números são peões. Não há dicionários de números.

Desapalavrados os números, havia intendências por saldar. Exercícios pretéritos que ainda não tinham transitado em julgado. Fórmulas que não transgrediam a formalização elegante da matemática. Paisagens sem métrica. Palavras que apenas soavam a palavras, recusando a colagem a números. Números e palavras deixaram de coabitar. A única exceção era quando se escrevia um número por extenso: havia quem insistisse em o fazer: um número por extenso transfigura-se em palavra. Uma palavra nunca se adultera num número; eis a superioridade da palavra.

Todas as contagens se esvaziaram, como se tivessem sido absorvidas por um mar cheio de sal, e o sal fosse o agente da sua dissolução. Já não contávamos anos. Não contávamos pessoas. Não contávamos dinheiro, na expressão máxima da desmaterialização de tudo a que aspirávamos em sonhos inconfessáveis. Não contávamos: nem os vivos nem os mortos, nem os que estavam feridos, em camas de hospital ou sob baixas médicas em regime domiciliário, depois de feridos por espadas terçadas pela ignomínia. Não contávamos as aleivosias. Não contávamos os inesgotáveis arroubos de felicidade, que foi decretado que a felicidade não era mensurável. Deixámos de contar os pecados irremissíveis, não porque os números perdessem paradeiro, mas porque o pecado deixou de participar no dicionário das almas. Deixámos de fazer contagens do avesso, por medo que o tempo fosse consumido pelo medo. Deixamos: de contar o tempo. E o tempo deixou de ser medido por números.

Disseste: agora os números são como divindades. Deixamos de estar reféns deles, e eles soltaram-se do ultraje de tudo quererem dominar. Os números são como divindades – insististe. Se elas existissem. 

9.3.23

Avesso ao avesso (excesso de honestidade)

Balla, “Segredos”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZZxO78zMu9o

*

Dois aviões aterram em pistas paralelas. Se confiasse na sombra, diria que os dois aviões estavam sobrepostos, em rota de colisão. O que faz a diferença é saber por que ângulo se afere o olhar. Um viés extrai-se do útero dos contratempos com a usura de quem não é meticuloso com a lente que depura o olhar. Difícil, é sepultar esse viés. 

**

As pessoas encavalitadas numa fila esperam por atendimento numa repartição pública. Um figurão bem-apessoado, deixando à sua passagem um enervante olor, atravessa a fila inteira e faz-se atender fora de ordem. Algumas pessoas resmungam, mas resmungam em puro ciciar, acariciando o medo por não saberem do privilégio e da casta do figurão. Sabem que a igualdade é uma patranha que serve para enfeitar discursos políticos. Como acontece com os enfeites, é um ardil. Efémero. Se alguém não estivesse arroteado pelo medo faria ouvir a sua voz de protesto. Talvez ouvisse resposta do figurão, não sem a correspondente pesporrência que contraiu matrimónio com os muito importantes, que tinha marcado vez de véspera. Nunca se chegaria a saber se o figurão era mitómano. Saber-se-ia que a igualdade é uma falcatrua.

***

Dizem que canta fado, ainda que para a pessoa menos instruída, ou menos atenta ao fado, não sejam patentes as semelhanças com o fado. Não é a voz singular que faz a diferença. Não é a entrada em cena de instrumentos que não costumam participar no fado que causa estranheza. O poema cantado pelo fadista não é um pranto, não arremata a angústia que parece embebida nos ossos de um povo plangente. A música vira-se do avesso para perder o vínculo rarefeito com ao fado (como é conhecido na sua tradicionalidade). O fadista singular ecoa ao fundo as derradeiras estrofes:

Juntas

as mãos concebem a manhã

e levantam o rosto lavado

abotoando o dia 

com um sorriso madrigal.

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O peregrino por conta própria atravessou o mundo de uma ponta à outra. Não levou roteiro. Meteu-se ao acaso e foi subindo e descendo com a ordem única de não haver regras. Agora que chegou a casa, olha para a pele e vê-se ao espelho. Não se reconhece. Mal reconhece o idioma em que pensa. Mal chegou a casa sente-se forasteiro. Maldita demanda, que o tornou sedentário em causa própria.

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Às vezes, o bibliotecário sonhava com os livros virados do avesso. Imaginava o exercício onírico: encomendava a escritores, até aos que já são defuntos, a antítese de uma obra sua. Tinham de partir dessa obra e das páginas em branco, para a reescreverem. Seriam desafiados a virar o livro do avesso. O bibliotecário queria saber quantos escritores seriam capazes de confessar o desassombro de repudiar o livro que fora a casa de partida, e quanto do livro reescrito seria feito de afastamento. Não queria saber se os escritores tinham de reinventar os seus nomes.

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A mão-de-obra era uma parcela que não podia ser desprezada pelos regentes e pelos poderosos que são donos de empresas que empregam a mão-de-obra. A mão-de-obra é, por muita distância, a maioria. O intérprete dos fenómenos políticos não compreendida como o tabuleiro das influências estava virado do avesso. As castas perpetuam-se na camada superior da sociedade, a que faz jogar as suas influências desprezando a ralé. As boas intenções ocupam lugar centrípeto nas mais belas proclamações que dão à costa mercê da competência técnica dos legiferantes. Mas não passam do papel. Oxalá houvesse alguém a ensinar, desde a tenra idade das escolas, que as ilusões são o verbo farto.

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Está confirmado que o pano de fundo que ateia a existência é um mal disfarçado avesso do catálogo que aparece nas estantes do conhecimento. 

8.3.23

The process of doing things

Pixies, “Tame” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=KR2OiHiysLg

As coisas amadureciam em seu pedestal. Latiam, como se fossem coisas, e nesse latido havia um discreto ressoar a angústia. Das coisas não se avinagram nomes, que os nomes não precisam de injúrias para serem hostis. Se olhássemos para as rochas pendidas nas montanhas, para o sortilégio de certas formações rochosas, teríamos um indício de como tudo era vetusto, de como tudo é belo. 

E, no entanto, a ancestralidade não era um embaraço. Tome-se o exemplo de (certos) vinhos: anima-se-lhes a qualidade com a idade que se sedimenta nos seus sedimentos. (A menos que avinagrem.) Ou as ruínas que são a imagem viva, projetada desde um passado remoto, até às faldas do presente. Os destroços não são destroços: são pedaços do passado que se prolongam pelo futuro dentro. 

Se houvesse um golpe de Estado interior, ele seria uma sublevação do corpo contra a intendência do tempo. Não seremos indulgentes ao ponto de a nós convocarmos um elixir da eterna juventude – melhor seria que a agulha fosse mudada para um eterno elixir da juventude, mas o desresultado seria o mesmo. Os pedaços de mar que beijam a terra confiscam a maresia, assim interrompida. Não precisamos da maresia – diz-nos o mar, animado pela maré recalcitrante. Os pedaços de espuma que a maré deixa em apressada herança são apenas apontamentos decorativos que não transfiguram a tela. É como as peles que envelhecem: são a tela onde se deita a idade, um compromisso a que ninguém pode faltar.

Às vezes, a noite tumultuosa devolve sonhos que resgatam um módico do passado. São os piores pesadelos. Fundem a ilusão com a recordação de um tempo irrepetível. Essa é a maior proeza: não ficar sitiado pelo penhor desses sonhos-pesadelos e projetar o tempo para a frente, como se a rua fosse de sentido único e os únicos interrompidos fossem os que viessem em contramão. A cordilheira não está vencida e são muitos os ângulos escondidos que estão à espera de revelação. Quem disse que o tempo só contava se fosse o já consumido está a mais, desarmado na sua hibernação. 

Se o mar se deixa ver completo desde o miradouro, os esteios da alma são acarinhados quando o olhar se distancia da tirania do tempo, da tirania que se apodera do pensamento e que o coloniza no medo da morte. Ao miradouro, antes que o nevoeiro tome conta da manhã e o olhar embaciado prescreva a latitude da alma.

7.3.23

Morfina

The XX, “Intro” (long version), in https://www.youtube.com/watch?v=eRYjhOpLd_s

Que céus plúmbeos atravessam os dias desengonçados, que despalavras se arremetem contra um coração sangrado, que muros estultos estão compreendidos entre o anátema do poder e os que são representados?

Que sombras se montam na linha da cumeada, como se fossem um eclipse que, perene, se torna o comodato de que somos inquilinos à força? 

Que desabilitação impende sobre uma herança que se arrasta enquanto tirocínio de si mesma, dissolvendo o tempo de que não chegamos a ser curadores?

Que desaprovação serve para esconjurar os intérpretes de um sentir maioritário, se entre essa maioria se filiam os que ficam atrás do esquecimento?

Que lição seria precisa para avivar as feridas dessas vítimas – seria matéria-prima bastante para os divorciar dos que parecem fadados, quase por divino decreto, a exercerem regência intemporal?

Na impossibilidade do precedente, que fármaco seria cautelar das dores dilacerantes que percorrem a carne inteira, sangrando-a como se de um matadouro se tratasse e o sangue aproveitasse às castas variegadas que se sentam à mesa do poder?

Que lente imprópria seria admitida a concurso para sindicar, sem hesitações ou preconceitos instituídos, as intenções dos regentes? O que seria preciso para regular a lente, e quem seria incumbido de o fazer?

Que venda baça seria precisa para fingir uma pertença sem linhagem, desbastada diante do tribunal do tempo que avaliza a incapacidade estabelecida para desfazer as arestas cortantes?

Que mares tumultuosos, ainda mais tumultuosos, têm de ser sulcados para se saber que a terra em espera é destemperada por uma sucessão de vontades impreparadas?

Que maratona é preciso concluir para desembaciar o olhar desinteressado, o olhar anestesiado, ou o olhar capataz?

Que desejo espera ser desembaraçado para voltarmos a ser tutores das palavras colocadas nas nossas bocas?

Que noites em vão serão convocadas para despejar a cal que disfarça de alvura as paredes corrompidas por tanto error?

Que perdas têm de ser inventariadas para violar as convenções que participam no princípio geral do torpor?

Que desfortuna se esconde na morfina tomada para disfarçar as ruas esburacadas legadas por mastins sem remorsos?

6.3.23

Porto caviar

Mogwai, “How to Be a Werewolf” (6 Music Live Session), in https://www.youtube.com/watch?v=ePsBt-sU9T0

Excesso de hormonas que se habilitam no vil metal: a cidade aburguesou-se. Desta vez, é um aburguesamento cosmopolita, feito da miscigenação das muitas nacionalidades que aterram no aeroporto que serve a cidade. Um certo requinte toma conta das ruas mais frequentadas. Rareiam os turistas de pé descalço, o que não é novidade: atrás do aburguesamento turístico vem o encarecimento da cidade, que não é talhada para os turistas de pé descalço; e, assim como assim, estes fogem da companhia dos turistas que passeiam a frivolidade burguesa, pertencem a mundos diferentes que não se misturam.

A cidade de outrora já só é um retrato que ficou imóvel algures no passado. A miséria que habitava os bairros dos operários, dos camponeses e dos pescadores deixou de ser o viveiro que se emprestava às imagens sintomáticas de um tempo e de um modo. Agora, são episódicas. Pelo bem dos operários, camponeses e pescadores, Agora a cidade transpira modernidade. Falam-se mais idiomas estrangeiros do que o idioma pátrio. As imagens da miséria eram o bilhete postal que encapotava um regime entretanto deposto, ele próprio de uma miséria providencial (assim propagandeada). Deixámos de estar orgulhosamente sós. Agora queremos o convívio dos outros. Queremos que os forasteiros se misturem com os nativos, que estejam em maior número nas ruas mais conhecidas e que deixem dinheiro, muito dinheiro, para os nativos que lhes prestam serviços poderem subir na escada que transpira materialismo.

Este é um Porto caviar. Deixou de ser um Porto sardinha, ou, em versão já melhorada, um Porto bacalhau. A língua franca é arranhada pelos nativos, que não sabem como a embeber com o turpilóquio herdado de varinas e vendedoras de mercado. Ainda não souberam aprender com os palavrões que enxameiam a linguagem quotidiana, os filmes, os livros, a música e o teatro. Os forasteiros podem ensinar os nativos a serem devolvidos à impressão digital que foram perdendo, quando romperam com a herança dos antepassados. 

Este é um Porto caviar, requintado, com forasteiros sofisticados que desfilam luxo nos lugares de preços extravagantes. Todavia, a cidade está a decrescer. Esta adulteração testemunha o seu decrescimento. Por mais que os que alojam e alimentam os turistas exibam parte da fortuna para eles transferida pelos turistas requintados, é um Porto que fica num ponto final à míngua da qualidade de uma cidade que não queria ser derruída pela banalidade. 

O Porto caviar foi transfigurado para agradar aos forasteiros. Já não é o Porto típico que se oferece aos turistas; é o Porto que os forasteiros, em abastardamento da veia cultural do turismo, gostam que lhes seja servido. A culpa não é só deles. É acima de tudo dos nativos que adulteraram a cidade, fazendo-a Porto caviar quando o caviar sempre foi uma raridade à mesa dos portuenses.

3.3.23

É a carne viva

Depeche Mode, “Ghosts Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIyrLRixMs8

As ruas não levam ao pecado. A noite não é um dicionário de angústias. As palavras que se ensaiam não são um verbete de inconsequências. Há vidas opostas, vidas estranhas umas às outras, e nem assim deixam de ser válidas. Há uma constelação de inquietações que tira lisura aos dias consecutivos.

Há olhares disfarçados. Vozes timoratas, por receio de serem atiradas para um protagonismo ardiloso. Nomes que não parecem ter fim. Lugares que se inventariam numa geografia sem lugar. Controvérsias, algumas – que um espírito desassossegado não finge a discórdia quando a omissão representa concordância por defeito. E há a carne viva que se entrega ao mundo, um corpo aberto que não procura esconderijo, como se essa exposição fosse pressuposto de uma pertença. 

Não é essa carne viva que interessa. Só conta a carne viva que se mostra a um punhado de pessoas, as pessoas que interessam. Pois as vozes que se amontoam à espera de um horizonte sem arestas são ciclópicas, não se traduzem, não dizem a não ser um tremendo nada. Os nomes que se arrastam numa toponímia de anónimos não obedecem a um chamamento. 

Há um labirinto perene que não desiste. Um labirinto onde nos podemos perder. E se nos perdermos, não vamos ao fundo de um poço para sentirmos a angústia de um cárcere. As mãos que tateiam as paredes do labirinto leem as frases truncadas, os dias que apostam na amálgama de diferentes tempos, algumas palavras que ficaram esquecidas no futuro. Como se pudéssemos voar e, em voo livre, sindicássemos as vidas nossas que continuam a ocupar o palco terreno. Com um olhar de lince, amadurecendo a carne viva que não chega a cicatrizar. De propósito. 

É no âmago da carne viva que se habilitam os mais puros sentidos, que se arranca a medula de um amor, que se cimenta um amor filial. Sem esconderijos, sem disfarces, sem intuir uma transfiguração que é um exílio de si mesmo.

2.3.23

Falso alarme

Fontaines D.C., “Televised Mind” (6 Music Live Session in the Radio Theatre), in https://www.youtube.com/watch?v=Q2PSdXpYjr0

I

O rapaz corria as ruas da aldeia com uma cabeça de vaca enfiada na cabeça. Meneava o corpo, numa coreografia desajeitada que parecia feita de propósito para assustar as pessoas. No meio de tanta agitação, os velhos habitavam na indiferença, sentados nos bancos espalhados à volta do adro. Olhavam para o relógio que encima a torre da igreja. Descontentes com a idade do tempo. (Ou com o tempo da idade, não tinham a certeza.)

II

As vestais envergonhadas seriam oferenda predileta para os noviços que ainda esperavam pelo tirocínio dos prazeres carnais. Um dos velhos, repousando a indiferença enquanto aproveitava o fim do dia soalheiro, sentenciou: “ó rapazes que ides de sangue fervente, ainda tendes tempo para aprender as artes da automutilação.”

III

O cura da aldeia ouviu o sussurro. Ficou dividido. Parte de si queria censurar o idoso – de que servia ao velho assustar os noviços e as vestais, se estavam sitiados pelo desejo e as palavras amarguradas do velho soavam à melancolia de quem está fora do tempo? A sua outra parte, aquela que incensa a pose institucional que quadra com a sotaina que enverga sempre que aparece em público, tendia a concordar com o velho. O rancor destilado era merecedor de perdão. Não havia pior castigo do que a velhice desanimada.

IV

A boémia foi litúrgica. Os despojos clareados pela luz inaugural do dia eram o mapa da loucura. Não se desaprende a liturgia dos corpos. Ficou para os homens do lixo o derradeiro testemunho da velocidade espantosa a que o sangue dos celebrantes se agarrou ao festim.

V

As árvores eram tão primaveris como as vestais e os noviços. Em horas desencontradas, recuavam às palavras não escritas que sindicavam a frivolidade tão benquista. Não era preciso dar um passado ao passado. A exuberância dos corpos tinha altar marcado para a celebração pagã a que os poderes seculares davam cobertura. Tanta era a fama do festim que de fora chegavam vestais e noviços numa dança cosmopolita que abraçava corpos forasteiros aos dos nadivos.

VI

Os costumes não chegaram tarde ao futuro. O silêncio da eclésia era uma caução em proveito próprio. Antes o silêncio estrutural do que o lume brando do opróbrio, se os curas desmatassem os usos e fossem apanhados em falso.

VII

A gente da cidadela era estranha aos sonhos pueris dos aldeões. A seu desfavor, a pose que, apanhada pela rama, era o embrião da estultícia. Eles é que ardiam em lume brando, reféns de modismos e da jactância perfumada pela ociosidade de tantos nadas disfarçados de coisa alguma.

VIII

Os aldeões é que sabiam. Em câmara lenta, sem se intimidarem com as fátuas lições dos demais. A eles, deixavam o encargo do falso alarme.