Trocavam os bês pelos vês, mas não o contrário. Diziam “bom dia” a meio da tarde. Não se assustavam com os espantalhos meticulosamente colocados a meio do caminho – nem com os espantalhos que os haviam assim disposto. Se chovia, saíam à rua e caminhavam quilómetros a fio, só para se sentirem ensopados. Se o vento estivesse alteroso, era do que se alimentavam. Do que dissessem ter saído de moda, era o que gostavam. Participavam na procissão dos ousados. Medo, era palavra que não constava do seu dicionário.
Apanhavam livros puídos em alfarrabistas depois de terem amesendado numa esplanada estival. Só ouviam música que não tinha lugar nos hábitos banalizados (que soubessem). Não os convocassem para manifestos, imperativos categóricos ou dogmas do politicamente correto, manifestações. Não os quisessem ver de braço dado com as brigadas que viram os números do avesso e insultam a palavra “democracia” quando se dizem seus embaixadores. No Verão, exilavam-se dentro de casa: detestavam a canícula que nem se comparava com a que aterroriza lugares mais meridianos. Se soubessem, viviam nórdicos.
Fundaram a confraria da tangerina. Inventaram um receituário já abundante em que a tangerina se junta como ingrediente. Inventaram uma receita original de sorvete de tangerina. Outra de pudim de castanhas, só que de tangerina. E espadarte com infusão de tangerina (e aneto). Um dia, em passeio por terras interiores, encontram um pomar de tangerinas e tiraram trezentas fotografias. Deu-se o acaso de saberem que o pomar estava à venda e nem regatearam o preço. Quando voltaram a casa, já eram proprietários rurais.
Também gostavam do luar, auroras boreais (que só conheciam de fotografias), sonhos, telhados de xisto, estradas nacionais desclassificadas e com asfalto irregular e esburacado, o mar tempestuoso, cachimbos (que nunca fumaram), gatos pardos, vinhas em socalcos aritmeticamente orquestrados, teatros rebeldes, poetas malditos, o amor que era seu e singularmente seu.
Um dia, prometeram que iriam a um lugar remoto que juraram visitar. Quando lá chegassem e se extasiassem com as paisagens, iriam selar o momento com um beijo. Ficaria emoldurado como um beijo imorredoiro, a magnífica paisagem em pano de fundo. Porque a vida sem o lado amoriscado não tinha serventia, era um longo bocejo que se recusavam a apadrinhar. Quando estivessem diante do vulcão adormecido, dir-lhe-iam o segredo para voltar à vida. Levar-lhe-iam tangerinas, para darem ao vulcão o ânimo que fosse a alquimia que precisava. Registariam a constelação de cores e de odores em fotografias catedráticas, deixando, em letra dourada, estrofes sem pavimentação.
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