O copo raso desembacia o entardecer atordoado. Os dedos cortam a espuma da cerveja, que transborda. Em tudo há remanescências, que estão a mais. Combina-se a sua inutilidade com um gesto implacável que as destina à indiferença. Os dedos molhados são enxutos num guardanapo de papel com o logotipo da esplanada. A Primavera compôs-se num daqueles dias que inauguram o sol e deixam na pele um leve travo às temperaturas que pedem a pele à mostra. Parece um dia que não tem vergonha.
Ao fundo, a televisão passa um canal de notícias contínuas. O costume: sangue derramado algures; a bestialidade que destoa a dignidade das vidas; a hipocrisia, o bel-canto da política; uns fait divers sobre mundanidades e as personagens habitualmente atreitas às mundanidades, emulsionando a sua frivolidade; a entorse das coisas, com a importância condensada em irrelevâncias e o que devia contar a ser atirado para a gramática do silêncio. Os mesmos rostos, a mesma sintaxe de um lugar que se contamina com a sua própria existência. Um logro inteiro. E nós, máscaras por inteiro, passivamente dando parte desta cumplicidade. Mecenas da nossa própria irrelevância.
Talvez gostemos de ser irrelevantes. É o preço da serenidade.
Não sei se apetece ser figura de corpo presente num palco onde a despertença ganha forma. Não sei se é capitulação o exílio interior como resposta: um ensimesmar, é certo, mas uma fuga para o interior que se distancia das regras do jogo, da impetuosidade gratuita que acasala com a desconfiança metódica e a boçalidade consequente, de um jogo de sombras que anula o paradeiro dos sentidos. Talvez ainda vá a tempo de fazer de conta que por dentro de mim é tudo diferente, mesmo que não se encontrem paradigmas no meu perímetro.
Desobedeço: solto o arnês, vou em demanda de apeadeiros que não estão no mapa. Arremeto contra os especiosos intérpretes das coisas como elas são sistematizadas, por sua renúncia. Desobedeço e sei que não ando longe de ser (considerado) pária. Não me importo. Ser pária neste lugar a que apetece despertencer é linhagem que não envergonha.
Desobedeço às convenções, desobedeço dos manuais de instruções, coloco-me nos antípodas das personagens que dão a cara pelo sistema atavicamente enraizado. Prefiro uma sucessão de curtas-metragens, mesmo que não exista um fio condutor entre elas. Prefiro uma cordilheira de imprevistos, santuários onde se certificam os paradoxos, as perguntas que são evitadas pelos meirinhos que ostentam à lapela as comendas que só podem ser ostentadas pelos que dizem falar em nosso nome. Prefiro o xisto, austero, em vez da flamância de azulejos que tão depressa se estilhaçam.
Desobedeço, para não desobedecer ao magma que acorda num levantamento sem nome.
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