Uma silhueta – apenas uma silhueta. Este era o libelo que pendia sobre o mercenário quando a rapariga (com que passara a noite) soube que era um mercenário. “Diz-me qual é o teu arsenal? É letal?” O mercenário virou-se para o outro lado da cama e fingia estar a dormir. Fingia: a sua maior arte, ser mercenário.
A rapariga ouviu o silêncio por minutos a eito. Pareciam horas. Ainda não estava em si. Passara a noite com um mercenário. Sentia-se imunda, coberta por toda a imundície que cobre um mercenário. Como se ela tivesse sido investida na condição de mercenária em desvirtude dos corpos que se haviam fundido. Nem a ideia de ser involuntariamente mercenária a sossegava. Abanou o mercenário e voltou a perguntar: “Diz-me qual é o teu arsenal? É letal?” E acrescentou: “Diz-me quando mataste a última pessoa. Diz-me!”
O mercenário levantou-se lentamente da cama e vestiu-se. Para quem está a soldo de quem pagar melhor, aquele pudor era paradoxal. O mercenário fez questão de esconder a nudez antes de se preparar para as respostas que ela queria. Ela ficou petrificada: o mercenário pôs um olhar assassino e, de repente, passou pela cabeça da rapariga que o mercenário quisesse usar o seu arsenal de violência inumana nela. “Tem calma. Não te vou fazer mal”, reagiu o mercenário ao vê-la estarrecida.
As palavras soaram a uma sinceridade que não quadrava com a linhagem de um mercenário. A rapariga sentia que estava segura. O mercenário tinha mais alguma coisa a dizer. Sentia-o; ele hesitou, demorou-se no silêncio, hesitou outra vez, mas queria dizer. É da natureza dos mercenários esconderem a alma do seu negócio. Esconderem até os mais fundos vestígios da alma. O mercenário estava a lutar contra a sua natureza. Mas disse:
- Eu sou um mercenário, mas não é desses mercenários malvados que estás a pensar. Qual é o meu arsenal, perguntas; quando matei a última vítima que me veio parar às mãos, perguntas. Não tenho armas comigo. Armas que usam munições, daquelas que trespassam os corpos das vítimas. Nunca matei ninguém. Sim, estou a soldo. Constantemente a soldo. De quem me pagar mais pelas encomendas feitas. Que encomendas – adivinho que perguntas, mal me ouviste a dizê-lo. Sou um perito contratado a peso de ouro para dar pareceres ao governo, às empresas, às pessoas que tiverem sido atirados para um conflito. Eu sou aquele que torce o sentido das palavras para dizer uma coisa e o seu contrário. Sim, podes-me colocar ao mesmo nível das autênticas meretrizes que se passeiam nos prostíbulos. Eu sou aquele que aluga a consciência por um rédito com muitos dígitos. Aquele que prescindiu da consciência em nome da ganância. Eu sou assim. Sou eu. Autenticamente mercenário. A soldo de quem vier, menos de mim. Eu como eu, antes do que sou mercenário, já não existo há muito tempo.
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