A pontualidade não era apreciada. Os monges desabitavam relógios e só espreitavam o sol, medindo meticulosamente o ângulo do sol. Se houvesse regras era pior: seriam em maior número os apanhados em falta, a contravenção não podendo ficar isenta de punição.
Um dia, apareceu uma garrafa no pátio. Uma garrafa vazia. Tinha sinais de desgaste – alguém bebera por ela, não era preciso andar à procura de impressões digitais. Pudera ser que um dos monges não cumpriu os votos de austeridade e se abraçou à bebida? Foi nomeado entre eles, por sorteio, um instrutor do ocorrido. Era preciso saber como a garrafa foi parar ao pátio onde se cominavam os castigos. Era preciso saber quem tivera a ousadia de quebrar os votos firmados pela casta. A provocação não podia cair em saco roto.
Ninguém quis saber se o instrutor era o infrator em pessoa. Todos partiram de outro pressuposto: para ser nomeado instrutor, o monge não podia ter cometido a infração. O dever de lealdade exigia que o instrutor se autodenunciasse, rematando com brevidade o processo de intenções. Não era possível o instrutor e o infrator serem uma e a mesma pessoa: deus não anda a dormir e moveu as suas influências para não se dar aquela coincidência.
A ironia era a garrafa ter descido ao pátio dos castigos. Quem a arrojou sabia do nome do pátio e também sabia que o nome não é por acaso ou um jogo metafórico. Dizia-se: naquele pátio foram cominados os castigos mais desumanos, antes de terem sido proscritos pelas autoridades eclesiásticas. Espreitar pelo buraco da modernidade era uma pulsão para alguns monges, que a escondiam. Os mais velhos e os mais puristas não alijavam o dogmatismo. Os mais novos eram olhados com desconfiança. Foi uma geração à frente dos novos novos que se afidalgou, cimentando o conservadorismo que sempre fora ostentação descontrolada dos radicais.
Ninguém contara, tão confiantes na supervisão divina de quem tinha intendência no processo: o instrutor confessou, a meio de uma boémia às escondidas, que ele foi o autor da desatenção, foi ele que trouxe a garrafa e bebeu o seu conteúdo numa noite. Confessou-o a um par que era o seu confessor. Estando preso ao dever de reserva sobre a matéria exposta em confissão, o confessor não pôde fazer nada. Por mais que lhe apetecesse denunciar o logro, vingou um dever superior: os pares não se denunciam uns aos outros, deixavam a empreitada para um superior ou para alguém de fora com provas dadas que fosse recrutado para desmentir os podres da congregação.
Nunca se soube a origem toponímica do pátio dos castigos. Era mais fácil que fosse uma metonímia do que um lugar que viu sangue derramado, cabeças e ossos partidos, cicatrizes com o passar do tempo. E a toda a mentira redonda, deus, distraidamente, condescendia. Tornando-se procurador da mentira.
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