9.3.23

Avesso ao avesso (excesso de honestidade)

Balla, “Segredos”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZZxO78zMu9o

*

Dois aviões aterram em pistas paralelas. Se confiasse na sombra, diria que os dois aviões estavam sobrepostos, em rota de colisão. O que faz a diferença é saber por que ângulo se afere o olhar. Um viés extrai-se do útero dos contratempos com a usura de quem não é meticuloso com a lente que depura o olhar. Difícil, é sepultar esse viés. 

**

As pessoas encavalitadas numa fila esperam por atendimento numa repartição pública. Um figurão bem-apessoado, deixando à sua passagem um enervante olor, atravessa a fila inteira e faz-se atender fora de ordem. Algumas pessoas resmungam, mas resmungam em puro ciciar, acariciando o medo por não saberem do privilégio e da casta do figurão. Sabem que a igualdade é uma patranha que serve para enfeitar discursos políticos. Como acontece com os enfeites, é um ardil. Efémero. Se alguém não estivesse arroteado pelo medo faria ouvir a sua voz de protesto. Talvez ouvisse resposta do figurão, não sem a correspondente pesporrência que contraiu matrimónio com os muito importantes, que tinha marcado vez de véspera. Nunca se chegaria a saber se o figurão era mitómano. Saber-se-ia que a igualdade é uma falcatrua.

***

Dizem que canta fado, ainda que para a pessoa menos instruída, ou menos atenta ao fado, não sejam patentes as semelhanças com o fado. Não é a voz singular que faz a diferença. Não é a entrada em cena de instrumentos que não costumam participar no fado que causa estranheza. O poema cantado pelo fadista não é um pranto, não arremata a angústia que parece embebida nos ossos de um povo plangente. A música vira-se do avesso para perder o vínculo rarefeito com ao fado (como é conhecido na sua tradicionalidade). O fadista singular ecoa ao fundo as derradeiras estrofes:

Juntas

as mãos concebem a manhã

e levantam o rosto lavado

abotoando o dia 

com um sorriso madrigal.

****

O peregrino por conta própria atravessou o mundo de uma ponta à outra. Não levou roteiro. Meteu-se ao acaso e foi subindo e descendo com a ordem única de não haver regras. Agora que chegou a casa, olha para a pele e vê-se ao espelho. Não se reconhece. Mal reconhece o idioma em que pensa. Mal chegou a casa sente-se forasteiro. Maldita demanda, que o tornou sedentário em causa própria.

*****

Às vezes, o bibliotecário sonhava com os livros virados do avesso. Imaginava o exercício onírico: encomendava a escritores, até aos que já são defuntos, a antítese de uma obra sua. Tinham de partir dessa obra e das páginas em branco, para a reescreverem. Seriam desafiados a virar o livro do avesso. O bibliotecário queria saber quantos escritores seriam capazes de confessar o desassombro de repudiar o livro que fora a casa de partida, e quanto do livro reescrito seria feito de afastamento. Não queria saber se os escritores tinham de reinventar os seus nomes.

******

A mão-de-obra era uma parcela que não podia ser desprezada pelos regentes e pelos poderosos que são donos de empresas que empregam a mão-de-obra. A mão-de-obra é, por muita distância, a maioria. O intérprete dos fenómenos políticos não compreendida como o tabuleiro das influências estava virado do avesso. As castas perpetuam-se na camada superior da sociedade, a que faz jogar as suas influências desprezando a ralé. As boas intenções ocupam lugar centrípeto nas mais belas proclamações que dão à costa mercê da competência técnica dos legiferantes. Mas não passam do papel. Oxalá houvesse alguém a ensinar, desde a tenra idade das escolas, que as ilusões são o verbo farto.

*******

Está confirmado que o pano de fundo que ateia a existência é um mal disfarçado avesso do catálogo que aparece nas estantes do conhecimento. 

Sem comentários: