20.3.23

O marinheiro cheio de testosterona

The Chemical Brothers, “No Reason”, in https://www.youtube.com/watch?v=Jm_WdaHBdlg

O Senhor Almirante das vacinas, protocandidato à presidência da república, gosta de soltar a trela ao discurso musculado. Está convencido – e não será por erro de diagnóstico, o que entristece ainda mais – que o povo simpatiza com o estilo. 

Há uma semanas, até a marinha espanhola apanhou umas vergastadas verbais do Senhor Almirante porque, de acordo com sua excelência, os espanhóis foram negligentes na perseguição de traficantes de droga que andam pelo Guadiana e pelo mar que chega à embocadura do rio. Há dias, o Senhor Almirante atirou-se à guarnição (não é tripulação – aprendemos) de uma fragata estacionada na Madeira que se recusou a embarcar numa missão de vigilância de um navio russo que passeava pelas águas territoriais. O Senhor Almirante advertiu que a mão será pesada para os indisciplinados. Que interessa que já haja sentença antes de o processo disciplinar ter sido instruído e ter terminado? O Senhor Almirante quer, os subordinados cumprem. Às malvas, o Estado de direito.

O Senhor Almirante também falou com a dureza de quem não tolera atos de indisciplina, explicando que a disciplina é o cimento da marinha. “Não há forças armadas sem disciplina”, recordou, em jeito de reprimenda para os destinatários diretos (os marinheiros insubmissos) e para os destinatários indiretos, todos nós, cidadãos e eleitores, para ficarmos em sentido se o quisermos como presidente da futura república. 

Andamos atónitos com a resistência da cúpula da igreja, que adia e continua a adiar a suspensão de curas associados a casos de pedofilia, com a igreja a avisar que tem leis próprias. Como se fosse uma autoridade dentro do Estado que passa à margem da autoridade do Estado; e agora damos de caras com a pose inexcedível do Senhor Almirante, que acredita que as regras do Estado de direito não se aplicam dentro da marinha, como se a marinha tivesse os seus códigos exclusivos e os marinheiros direitos de cidadania diminuídos. 

Mas o Senhor Almirante falou para dentro sabendo que estava a falar para fora. Ainda não negou que seja candidato às eleições presidenciais e, adivinha-se a partir deste posto de observação, deve ser atravessado por excitações carnais de cada vez que lê “sondagens” que o colocam na rampa para a presidência da república. Como ainda não veio dizer que é apenas da tropa e não tem ambições políticas, é ele que ateia estas “sondagens” e a sua pose presidenciável. Por isso, não é suficiente falar às tropas; tem de falar para o seu potencial eleitorado. O Senhor Almirante, que não padece de falta de inteligência, sabe que este povo ainda tem saudades de líderes com punho de ferro e que esse povo corta transversalmente eleitorados de vários partidos. O Senhor Almirante gosta de ostentar a pose de disciplinador, sabendo que há quem goste de ser disciplinado. Aproveita as oportunidades para debitar declarações num embrulho (que devia ser) atávico. 

As ambições políticas, se dúvidas sobre elas houvesse, foram confirmadas quando o Senhor Almirante descobriu o dedo do partido comunista na sublevação de parte da guarnição da fragata. Aproveitando para dar uma alfinetada que só os distraídos não compreenderam (um dia destes, a guarnição vota em reunião geral, de braço no ar, se embarca numa missão – disse, com ironia mal disfarçada), já mandou dizer que o PC está a boicotar a sua excelsa pessoa. 

O Senhor Almirante devia ter noção. Se for verdade que as ambições políticas lhe correm no sangue, devia contratar uma agência de comunicação que temperasse a sua incontinência verbal e amaciasse o amadorismo político. Os comunistas têm direito a existir e a fazer política à sua maneira. Como alguns membros da guarnição têm o direito (apesar do desgosto do Senhor Almirante) de simpatizar com o PC, ou até de serem os idiotas úteis deste partido, por mais que isso constitua desprazer para o Senhor Almirante. 

Este país ainda é uma democracia. Talvez esteja a caminho de ser uma democracia amesquinhada e entortada se o discurso musculado e a prepotência do Senhor Almirante fizerem escola, subirem nas “sondagens” e atraírem, em sede de eleições, a maioria do eleitorado.

Deste posto de observação, digo: oxalá se possa dizer, a partir destes episódios de linguagem de caserna, musculada e aparentemente cheia de testosterona, paz ao cadáver político do Senhor Almirante. 

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