Acabou a tirania dos números – disseste.
Já não contam as estatísticas. Deixou de haver um navio cheio de números a traduzir intenções. As noites não aparecem pintadas por equações que ninguém consegue resolver. Dizias: agora a cabalística ficou exausta; os números apenas significam a sua numérica expressão, perderam toda a ligação com as palavras. Os números deixaram de ser generais prussianos, austeros e implacáveis com as nossas desatenções. Agora – disseste – os números são peões. Não há dicionários de números.
Desapalavrados os números, havia intendências por saldar. Exercícios pretéritos que ainda não tinham transitado em julgado. Fórmulas que não transgrediam a formalização elegante da matemática. Paisagens sem métrica. Palavras que apenas soavam a palavras, recusando a colagem a números. Números e palavras deixaram de coabitar. A única exceção era quando se escrevia um número por extenso: havia quem insistisse em o fazer: um número por extenso transfigura-se em palavra. Uma palavra nunca se adultera num número; eis a superioridade da palavra.
Todas as contagens se esvaziaram, como se tivessem sido absorvidas por um mar cheio de sal, e o sal fosse o agente da sua dissolução. Já não contávamos anos. Não contávamos pessoas. Não contávamos dinheiro, na expressão máxima da desmaterialização de tudo a que aspirávamos em sonhos inconfessáveis. Não contávamos: nem os vivos nem os mortos, nem os que estavam feridos, em camas de hospital ou sob baixas médicas em regime domiciliário, depois de feridos por espadas terçadas pela ignomínia. Não contávamos as aleivosias. Não contávamos os inesgotáveis arroubos de felicidade, que foi decretado que a felicidade não era mensurável. Deixámos de contar os pecados irremissíveis, não porque os números perdessem paradeiro, mas porque o pecado deixou de participar no dicionário das almas. Deixámos de fazer contagens do avesso, por medo que o tempo fosse consumido pelo medo. Deixamos: de contar o tempo. E o tempo deixou de ser medido por números.
Disseste: agora os números são como divindades. Deixamos de estar reféns deles, e eles soltaram-se do ultraje de tudo quererem dominar. Os números são como divindades – insististe. Se elas existissem.
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