15.3.23

MCMXCI

 

Dolores Forever, “Conversations With Strangers”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y3rHdaRiRoY

O tempo tendeiro, nevoeiro pela berma da estrada, e toda a nostalgia encerrada numa fortaleza, inacessível. Era imprevidente o golpear da memória no tempo presente (alguém dizia). Outros, em maioria, refugiavam-se nos lençóis da memória, como se ela os tutelasse e eles já não tivessem nenhuma maré para dar ao presente.

Uma recusa parcial apoderava-se da vontade que devia ser conjugada no tempo presente. Mas havia um vício inenarrável que atirava o olhar para as masmorras onde o tempo passado se conjeturava: era como se apenas o passado fosse compulsado – e nisso havia uma verdade irrefutável: só se pode inventariar esse tempo, o presente é vivido nesse breve lapso e logo se extingue, ou se não se extingue a sua efemeridade condena-o a ser passado sem que seja possível dar conta disso; o futuro não é sindicável.

Contudo, havia uma seita numerosa que vivia agarrada às bainhas do pretérito. Convocava as memórias, como se elas fossem a costura do presente. Havia quem dissesse, de forma cautelar, que não podemos oprimir o passado, deixando-o sob uma pedra que o oculta. Advertiam: se não honrarmos o passado que somos, não somos nada, somos a negação do presente que se extingue no futuro em que se torna. E voltavam-se para trás, como se fossem guiados através de um retrovisor e tudo fosse a repetição do que já tivera moldura no passado. Deles se dizia serem contumazes ao presente. Não se importavam; não se importavam muito com o presente, a não ser no que o presente fosse efémera recompensa e indesejável pesar.  

Os calendários estavam desarrumados em cima do estirador. Ao acaso, folheando as páginas para resgatar episódios avulsos, como se esse fosse o conceito do presente. Parou na agenda encimada, em letras douradas, pela data em numeração romana: MCMXCI. As memórias, em viagem vertiginosa, bolçavam uma sucessão de acontecimentos e desacontecimentos. Os dedos passavam pelas páginas da agenda e sentiam pedras pontiagudas, pedaços de pétalas perfumadas que ficaram mumificadas entre duas páginas, estrofes inacabadas, intenções que ficaram sem paradeiro, outras adiadas até serem possíveis, pedaços de carne exaurida que açambarcavam o tempo presente com a nostalgia do passado. E os dias passavam, indiferentes, com a intendência de quem se declarava omisso aos dias correntes. Uma contumácia que só podia ter punição interior.

MCMXCI já acontecera. Se ao menos o convencessem que a contagem é feita para a frente.

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