Exumada a ossatura de Cleópatra, os ossos do nariz foram meticulosamente anatomizados. Estava em causa a confirmação do mito sobre o nariz de Cleópatra. De Cleópatra se dizia ser irascível. Tinha um nariz adunco que, fez-se constar, explica a sedução que exerceu sobre, por exemplo, Júlio César. Ora, as metáforas não assomam à superfície por acaso. Quando dizemos de alguém que a mostarda (lhe) subiu ao nariz, estamos perante uma pessoa que se abespinha com facilidade – alguém que tem um mau feitio que afasta as pessoas. Os peritos queriam apurar se havia resíduos de mostarda na ossatura nasal de Cleópatra. Usaram a tecnologia mais avançada. Não conseguiram chegar a resultados conclusivos. Depois descobriu-se: os peritos tinham instruções superiores para desmentir o mito do nariz de Cleópatra. Não está na moda do politicamente correto que de uma mulher se diga que traz consigo um feitio difícil, que é arisca. E, muito embora Cleópatra esteja defunta há mais de vinte séculos, não se levantando a possibilidade de um morto (nem que o seja há um minuto) se incomodar com rótulos que lhe sejam pespegados, a linguagem imperativa, associada aos dogmas que ensinam o que pode ser dito e o que está banido do espaço público, manda que se desfaça o mito que atira o ultraje do mau feitio para o sexo feminino. Assim como assim, quando Cleópatra era viva, não há notícia que a mostarda fosse um molho ou que fosse um condimento usado na gastronomia dos faraós. Eis o desmentido formal do mito: das mulheres não se diga que lhes sobe a mostarda ao nariz, porque o seminal nariz feminino não chegou a conviver com a mostarda. Os homens, esses sim, é que são penhores do feitio irascível. Apesar da desaprovação das generalizações, que matam de tédio qualquer mortal.
17.3.23
Cleópatra tinha um nariz sensível à mostarda? (short stories #419)
Peter Murphy, “Deep Ocean Vast Sea”, in https://www.youtube.com/watch?v=539fmHhmDQc
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