3.3.23

É a carne viva

Depeche Mode, “Ghosts Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIyrLRixMs8

As ruas não levam ao pecado. A noite não é um dicionário de angústias. As palavras que se ensaiam não são um verbete de inconsequências. Há vidas opostas, vidas estranhas umas às outras, e nem assim deixam de ser válidas. Há uma constelação de inquietações que tira lisura aos dias consecutivos.

Há olhares disfarçados. Vozes timoratas, por receio de serem atiradas para um protagonismo ardiloso. Nomes que não parecem ter fim. Lugares que se inventariam numa geografia sem lugar. Controvérsias, algumas – que um espírito desassossegado não finge a discórdia quando a omissão representa concordância por defeito. E há a carne viva que se entrega ao mundo, um corpo aberto que não procura esconderijo, como se essa exposição fosse pressuposto de uma pertença. 

Não é essa carne viva que interessa. Só conta a carne viva que se mostra a um punhado de pessoas, as pessoas que interessam. Pois as vozes que se amontoam à espera de um horizonte sem arestas são ciclópicas, não se traduzem, não dizem a não ser um tremendo nada. Os nomes que se arrastam numa toponímia de anónimos não obedecem a um chamamento. 

Há um labirinto perene que não desiste. Um labirinto onde nos podemos perder. E se nos perdermos, não vamos ao fundo de um poço para sentirmos a angústia de um cárcere. As mãos que tateiam as paredes do labirinto leem as frases truncadas, os dias que apostam na amálgama de diferentes tempos, algumas palavras que ficaram esquecidas no futuro. Como se pudéssemos voar e, em voo livre, sindicássemos as vidas nossas que continuam a ocupar o palco terreno. Com um olhar de lince, amadurecendo a carne viva que não chega a cicatrizar. De propósito. 

É no âmago da carne viva que se habilitam os mais puros sentidos, que se arranca a medula de um amor, que se cimenta um amor filial. Sem esconderijos, sem disfarces, sem intuir uma transfiguração que é um exílio de si mesmo.

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