14.3.23

Quando perguntaram o que seria ser quando fosse grande, respondeu: “Dom”

Clan of Xymox, “Stranger”, in https://www.youtube.com/watch?v=TuKgAj9m-Fc

Ai se a monarquia pudesse fazer o tempo andar para trás – ou se o tempo, variável independente, se cansasse da modernidade e mandasse nos costumes, mandando restaurar a velha lógica conservadora. Pensava que era mais fácil envergar um título nobiliárquico. Desde que bebera Dom Perignon, era uma ideia que não lhe saía da cabeça. (Mas podia ser das borbulhas que descem na companhia do champanhe.)

Sempre foi diferente dos outros. Desde a escola, quando debitava as datas importantes da História de trás para a frente e era capaz de indicar no mapa todas as praças-fortes que foram sendo lavra dos descobrimentos. No quarto, foi enchendo as paredes com quadros dos reis, debruados com requintadas molduras que exigiam os rococós do costume. Os colegas colavam cartazes de estrelas efémeras da música (ou estrelas da música efémera). Os que descobriam as hormonas mais cedo, não se envergonhavam de rasgar as páginas centrais de revistas no mínimo eróticas, fazendo do quarto o seu imaginário lúbrico. Ele ainda não sabia como era o seu corpo nu.

Mais tarde, estudante universitário e cheio de iniciativa, deixou crescer um garboso bigode farfalhudo. (A farfalha custou quase dois anos de paciência, que as pilosidades cresciam com vagar.) Vestia como os gentleman ingleses e abusava de forças de expressão entoadas num inglês com sotaque impecavelmente nativo. Foi da sua iniciativa a criação de movimentos que resgatavam as tradições e juravam uma portugalidade que estava a ser constantemente enxovalhada pelas excrescências dos novos e madraços tempos e dos soezes que colonizaram o poder. 

Ostentava um distinto título nobiliárquico: visconde do Sorraia, inventado por si – assim como assim, como não havia certificação dos títulos nobiliárquicos, por terem sido banidos pelo republicanismo pagão, paradoxalmente tornava-se mais fácil pespegar um título nobiliárquico ao nome. Se outras fossem as modas, e se os títulos dos nobres ainda tivessem valimento, ele não passaria da cepa-torta. Foi o laicismo republicano que salvou as suas pretensões. Nunca reconheceu esta dívida aos republicanos.

Ainda se lembra, quando era pequeno mas já formara alguma consciência política, um tio (comunista) perguntou o que queria ser quando chegasse a grande. Respondeu, sem que o tio tivesse tempo de molhar os lábios no uísque burguês: 

- Dom. Quero que me tratem por Dom.

O tio, que já acusava uma taxa de alcoolémia que dava direito a ficar sem carta de condução, baralhado pelo catecismo marxista-leninista a que jurou fidelidade eterna (ele não sabia que não se devia usar em público a palavra “sempre”), devolveu em pergunta:

Mas queres ter um dom de quê? Malabarista? Pescador? Operário? Professor? Metalúrgico?

E o petiz, ofendido por entender que a pergunta vinha carregada de ironia, desferiu um pontapé nas canelas do tio e, enquanto este se debatia com dores (mais por ter vertido o uísque de primeira do que pela contusão na canela), disparou: 

- É para aprenderes, ó cabrão comunista.

Foi o início da sua carreira de arruaceiro, sem algum dia entender que a arruaça não era compatível com os punhos de renda que reclamava a seu favor. Um dia, já próximo da quinta década de vida e ainda fiel à monarquia (uma qualquer), alguém quis fazer ver a contradição entre ser nobre e andar constantemente em motins. Não convencido – estava, pelo contrário, convencido que era uma armadilha para o convencer a deixar de ser empedernidamente conservador – o Dom a que ninguém chamava Dom respondeu: 

- É preciso estar de atalaia. Só assim me consigo defender do acosso constante, de ser apanhado num canto e de ter uma multidão a rir-se de mim, de uns mastins a soldo da comandita habitual que me querer convencer à força a deixar de ser o que sou. Pode ser que aprendam com a violência. Não me desafiem, que ainda hoje treino boxe e as artes marciais não me são estranhas. Na minha conta, a meu favor, já tenho uns quantos queixos partidos e cabeças esmurradas. Já que não me devolvem a monarquia.


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