[Monólogo]
A vida é uma curta-metragem. Não seja a métrica imoderada a asfixia das ilusões, ficando o corpo estático à mercê das circunstâncias que se jogam no exterior da vontade. Uma curta-metragem pode representar a ignorância do tempo, ou a indigência do medo. Quando somos velhos e estamos a um degrau da morte, ninguém dirá que a vida foi uma longa-metragem. Não são os arrependimentos bolçados que orquestram a nova esquadria do tempo. Parece que alguém se manifesta como um pirata que nos absolve do medo. A paga é a instrução para sabermos receber os braços lânguidos da morte, como se a vida deixasse de nos pertencer – como se ela nunca nos tivesse pertencido.
[Um trovão anuncia a tempestade inaugural. Os olhos desviam-se para a janela e o corpo levanta-se, trémulo. Os raios que precedem os trovões ramificam-se no céu, emprestando cores à noite que deixou de ser monopólio.]
As pontes que atravessam os rios falam um idioma próprio. Quem as tece não precisa de saber esse idioma. Quando foram levantadas, os operários e os engenheiros não sabiam das vidas que seriam servidas pelas pontes. Com a sua arte, deram vida a muitas vidas que seriam abandonadas ao desmazelo de quem não povoa outros lugares. São os diferentes lugares que exaltam as vidas que os visitam. As vidas são como vírgulas que não fazem a diferença. Antepõem-se às palavras que dirimem o ónus da insignificância. É como as vidas. Umas tornam-se visíveis: ora merecem as loas, ora se prestam ao enxovalho. Sobem a palco e são sindicadas pelo olhar inquisitivo do forasteiro (os outros são sempre os forasteiros). Outras atravessam os pântanos e as paisagens bucólicas sem serem inventariadas. Todas estão destinadas a deixarem de ser quando a morte se abater sobre elas. Um cínico embaixador do desmedo insurge-se contra a apatia geral e protesta que a vida devia ser imortal. Teve de legitimar a pronúncia: falava através das arestas vivas de uma metáfora.
[A manhã espreita entre a penumbra que teima em se adiar.]
A insónia percorreu a noite inteira. Os pensamentos desfilavam, atravessando a durabilidade da noite – como se a noite fosse sua procuradora e ele, mecenas das interrogações, não quisesse deixar um legado para memória futura. As vidas são vividas enquanto se adestram na antítese da morte, mas não era preciso escolher a frivolidade dos lugares-comuns. Não sabia mais que palavras coreografar para se convencer que há sempre um posfácio a escrever, uma elegia emoldurada numa boca alheia. Um elogio de que já não somos testemunhas.
[O ocaso da manhã serve um nevoeiro tardio na embocadura do rio. As aves refugiam-se nos ninhos, como se temessem que o nevoeiro as engolisse. Não se considerasse o nevoeiro fundente uma espada a rematar vidas em espera: no avesso do nevoeiro situa-se um lugar demiúrgico. Será nosso, mal o nevoeiro seja deposto.]
Cada dia ultrapassado não era uma proeza. Era apenas um dia, uma página deitada num livro ora aberto, ora fechado, à custa do que custa verter o olhar na matéria de que eram feitos os tempos conhecidos. Cada dia era a expressão de uma teimosia. Da teimosia de trazer a vida no sopé da falésia, sabendo que o precipício é intransigente com as distrações e com os que se abandonam a uma errância sem apeadeiro.
Era arriscado andar por ali sem arnês.
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