2.3.23

Falso alarme

Fontaines D.C., “Televised Mind” (6 Music Live Session in the Radio Theatre), in https://www.youtube.com/watch?v=Q2PSdXpYjr0

I

O rapaz corria as ruas da aldeia com uma cabeça de vaca enfiada na cabeça. Meneava o corpo, numa coreografia desajeitada que parecia feita de propósito para assustar as pessoas. No meio de tanta agitação, os velhos habitavam na indiferença, sentados nos bancos espalhados à volta do adro. Olhavam para o relógio que encima a torre da igreja. Descontentes com a idade do tempo. (Ou com o tempo da idade, não tinham a certeza.)

II

As vestais envergonhadas seriam oferenda predileta para os noviços que ainda esperavam pelo tirocínio dos prazeres carnais. Um dos velhos, repousando a indiferença enquanto aproveitava o fim do dia soalheiro, sentenciou: “ó rapazes que ides de sangue fervente, ainda tendes tempo para aprender as artes da automutilação.”

III

O cura da aldeia ouviu o sussurro. Ficou dividido. Parte de si queria censurar o idoso – de que servia ao velho assustar os noviços e as vestais, se estavam sitiados pelo desejo e as palavras amarguradas do velho soavam à melancolia de quem está fora do tempo? A sua outra parte, aquela que incensa a pose institucional que quadra com a sotaina que enverga sempre que aparece em público, tendia a concordar com o velho. O rancor destilado era merecedor de perdão. Não havia pior castigo do que a velhice desanimada.

IV

A boémia foi litúrgica. Os despojos clareados pela luz inaugural do dia eram o mapa da loucura. Não se desaprende a liturgia dos corpos. Ficou para os homens do lixo o derradeiro testemunho da velocidade espantosa a que o sangue dos celebrantes se agarrou ao festim.

V

As árvores eram tão primaveris como as vestais e os noviços. Em horas desencontradas, recuavam às palavras não escritas que sindicavam a frivolidade tão benquista. Não era preciso dar um passado ao passado. A exuberância dos corpos tinha altar marcado para a celebração pagã a que os poderes seculares davam cobertura. Tanta era a fama do festim que de fora chegavam vestais e noviços numa dança cosmopolita que abraçava corpos forasteiros aos dos nadivos.

VI

Os costumes não chegaram tarde ao futuro. O silêncio da eclésia era uma caução em proveito próprio. Antes o silêncio estrutural do que o lume brando do opróbrio, se os curas desmatassem os usos e fossem apanhados em falso.

VII

A gente da cidadela era estranha aos sonhos pueris dos aldeões. A seu desfavor, a pose que, apanhada pela rama, era o embrião da estultícia. Eles é que ardiam em lume brando, reféns de modismos e da jactância perfumada pela ociosidade de tantos nadas disfarçados de coisa alguma.

VIII

Os aldeões é que sabiam. Em câmara lenta, sem se intimidarem com as fátuas lições dos demais. A eles, deixavam o encargo do falso alarme.

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