27.3.23

As estátuas não morrem de pé

Tó Trips, “Amor em Tempos Fodidos”, in https://www.youtube.com/watch?v=4bfzeHGRPKQ

O avô esperava a tarde no jardim. Esperava que fosse hora de jantar, para ir a nossa casa jantar em silêncio, mostrando uma impassibilidade sofrida que, todavia, não era uma máscara de dor. Durante o dia, não queria ser conselheiro da solidão que invadira a casa depois de a avó ter morrido. Não é que fosse passar a tarde num banco do jardim para esconjurar a solidão. Mas na casa era pior. Sempre se habituara a que a casa fosse um trinómio: a avó, ele e a casa (por esta ordem de importância). Agora, a casa estava amputada. Deixou de ter marés e flores e poesia espalhada em pequenos papelinhos amarelos. A casa era impossível durante o dia.

Havia outros velhos no jardim. Uns, como o avô, exorcizavam alguma forma de solidão, vagueando vagarosamente pelo jardim, como se o tempo resistisse à sua andadura. Outros, em matilha, vozeando sem cerimónias, jogando cartas ou discutindo a atualidade folheada nas páginas dos jornais. O avô fugia desse alvoroço. Não queria disfarçar a solidão. Não queria que os outros velhos fossem um elixir para o luto de que não conseguia fugir. Não queria exilar-se de si mesmo.

Os netos aconselhavam a vida porque tinham medo que este seu desviver avivasse os deuses da morte. O avô não se deixava convencer: “a morte da avó foi o meu luto principal, mas não foi o primeiro. Esse foi quando tive de me reformar.” E o avô, que em novo sempre dissera que não se iria encerrar num luto labiríntico se ficasse depois da avó, e que jurara não tatuar o corpo com roupas escuras porque sempre fora contra os maus costumes que compunham uma sociedade mesquinha, acabou a fazer o contrário de tudo o que sempre prometera não fazer. Parecia que desistira da vida – como se lhe tivessem arrancado uma parte do coração e o sangue parasse de circular.

Um dia, uma das netas quis saber que memórias ele tinha da avó. Ele desconversou. Os silêncios que entrecortaram os monossílabos arrancados a ferros eram a expressão do seu estado de espírito (talvez). Ou podia ser que quisesse conservar-se como o único guardião dessas memórias, sendo seu o dever de honrar a cumplicidade que vivera com a avó. À medida que o avô desconversava, a neta parou de fazer perguntas. Limitou-se a observar os olhos cansados do avô, os olhos perdidos algures, como se na sua errância o avô encontrasse um emoliente para a solidão. Numa golfada de sílabas milimetricamente medidas, sossegou a neta: “A última coisa que quero é que fiques preocupada comigo. A solidão não é um archote que incendeia as veias. Sim, sinto solidão. Mas é a continuação do amor pela tua avó.”

Nesse dia, a neta descobriu que se as árvores morrem de pé, as estátuas são feitas à prova de morte. 

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