Não se olhe às trevas que esterilizam o olhar. A sementeira pode ser farta se formos os mecenas que as terras esperam. Em vez de serem arregimentadas fronteiras, façamos livres as alfândegas; não sejam pagos estipêndios pela cepa das pessoas, ainda que venham de idiomas diferentes, ainda que diferentes sejam as suas culturas. Dizem: somos todos anónimos em terra alheia. E eu pergunto: não somos todos anónimos na terra que nos é dita ser nossa? Ou então, esta interrogação: e o que interessa o desanonimato (pressupondo que o anonimato é um estigma)? As fundações inamovíveis correspondem à ossatura estrutural das pessoas. E os ossos têm o mesmo nome em todo o lugar. O sangue não canta hinos, não se extasia com bandeiras que atestam uma identidade, não entra em ebulição com heróis que apadrinham uma pertença. Um passo em frente: e se no anonimato se animar o nanismo de cada um de nós, por que temos de verberar o anonimato? A maior compensação do anonimato é (quase) ninguém saber o nosso nome, (quase) ninguém reconhecer o rosto quando saímos à rua, (quase) ninguém dar importância ao que dizemos. Só não somos anónimos para as pessoas que nos habitam a alma. Essa é a melhor desangústia. Os dias repetidos rimam com o anonimato; mas são os dias que contam. O anonimato é a credencial para a liberdade. Os que povoam o palco da visibilidade não partilham a mesma carta de intenções. A igualdade é uma miragem (outra vez). Cuide-se desta discriminação positiva: à imensa maioria dos anónimos, a sinecura da liberdade; aos que gravitam na visibilidade pública, uma liberdade minimalista, castrada. Não podem ser desanónimos – não têm a mesma latitude de gestos, de comportamentos, de palavras, que aos anónimos assiste. Se fôssemos todos anónimos na terra pátria, ninguém seria anónimo em terra alheia.
30.6.23
Anónimo em terra alheia (short stories #427)
29.6.23
Não há sangue órfão
Não há geração espontânea. Carregamos um legado, ou parte de um legado, mesmo que seja contra a vontade. São os eflúvios da memória que compõem uma identidade com a paciência do tempo duradouro. A identidade não se faz a partir de uma folha em branco. Por mais que seja cultivada uma forma própria de ser e de estar, não se nega a validade do sangue de que todos somos feitos.
Um sotaque, um costume social, uma música, uma celebração coletiva com direito a calendário, personagens históricas que ajudaram a cimentar uma pertença – por maior que seja firmada a antinomia, o sangue que corre nas veias não pode ser recusado nem recusada pode ser a hereditariedade desse sangue.
Desta casa da partida vamos ao encontro de duas vias possíveis. Há os que aceitam, acriticamente, o sangue herdado. E os que mantêm a recusa desse sangue, dizendo, em sua defesa, que é órfão o sangue que corre nas suas veias. Aqueles embebem uma certa forma de estar que é típica do lugar em que vivem e não se sublevam para a questionar. Estes afastam-se dessa maneira de estar, repudiam a forma automática com que os costumes e o cimento social passam de geração em geração.
Os que convocam o sangue órfão, de tanto se oporem à ideia do irremediável sangue legado, não alcançam a lucidez de que nem tudo se arruma num raciocínio binário. Não reconhecem um ponto algures equidistante entre a acrítica pertença e a sua recusa radical. Uma identidade não exige adesão integral aos elementos que tenham sido inventariados como seus marcadores genéticos. Pode haver afastamento de alguns e aceitação, mesmo que não descomprometida, de outros. E adesão em diferentes camadas aos marcadores dessa identidade.
A identidade não é constante. O sangue que se transmite de geração em geração sofre mutações. O tempo e a circunstância são a caução dessas mutações. Os que dão cobertura à dissidência de certos elementos constitutivos de uma identidade podem estar, sem darem conta, a contribuir para a reconfiguração dessa identidade. Não podem reivindicar, de si mesmos, o sangue órfão. A humildade, ou apenas a recusa obstinada que trava a lucidez, impede que se reconheçam como agentes da mudança. Não é órfão o sangue que percorre as suas veias. É sangue em parte metamorfoseado, em parte herdado de diferentes camadas ancestrais.
São os espíritos dados à abertura que compõem a pauta em que se cinde o ancestral com o novo como o caldo onde se aviva a identidade reinventada.
28.6.23
Achados (duas vidas)
Uma alminha instalada na berma da estrada. Alguém encontrou naquela estrada, naquele preciso marco quilométrico, o seu algoz. Se por algoz se ajuizar o vulto severo que vem cessar uma vida. A alminha como cemitério onde aquela vida deposta se expõe às lágrimas de quem continua a alimentar metodicamente as flores que a homenageiam. Como se as flores enxugassem o sangue que continuamente é vertido para o asfalto puído.
Se as dores não fossem uma consumição, a pessoa perdida ficava esquecida nas brandas do nevoeiro que se acumula na contagem dos dias. É preciso avivar a memória, prolongando a dor da ausência de que uma morte é procuradora. Uma ausência que se contagia por dentro, como se a própria vida se tivesse dissolvido com a extinção de outra vida. Duas vidas gémeas que se prolongam na agonia de uma que ficou a entoar prantos pela ausência da outra.
O luto exige um luto, todavia. Não é perene. Se a amargura da ausência for tão corrosiva, é como se hibernasse num mundo paralelo onde as ilusões tomam conta de tudo, até da vida que ficou. O luto é uma luta, necessária. Mandam os costumes: a indiferença do luto é a desonra da vida tornada ausente pela morte algoz. Noutras latitudes, os funerais não são um funéreo desfilar de melancolia, como se a morte não tivesse lugar na geografia humana, como se não fosse visitação de todas as almas vivas em momento a determinar pelo acaso que ela quiser. Nesse lugares, o funeral é celebração. Uma vida conta pelo que ela foi, não pela imensa tristeza que coloniza os que se sentem perdedores com a partida sem volta.
Seria preciso mudar os costumes. Para que ninguém vertesse uma lágrima, ninguém se deixasse contaminar por uma melancolia a atravessar calendários a eito. Pudesse isso não ser entendido como uma desonra da pessoa que partiu; pudesse a vida ser consagrada no peito de todos os que ficam para homenagear a pessoa que deixou de figurar entre os vivos; e a morte não era (para além da angústia que em si encerra) o pressentimento da morte de quem fica para contar a história.
A morte seria um achado: as duas vidas, a defunta e a de quem a sua partida encara, e a obrigação de quem fica de a consagrar com o resgate de memórias que celebram a vida, em vez do cortejo fúnebre em que parece adivinharmos a nossa vez de morrer.
27.6.23
Hoje aprendeste alguma palavra nova?
Às vezes, as palavras deviam combinar como hierogamias.
(Do dicionário, hierogamia: casamento ou união sexual entre divindades ou entre uma divindade e um ser humano.)
Deviam rejeitar os vultos que assombram as páginas que esperam as palavras. E mesmo que fosse preciso recorrer a palavras pouco sabidas entre a voz corrente, a voz corrente teria de abrir o dicionário e enriquecer o vocabulário. Os juros acumulados no conhecimento não são embaraço nem há conta que incomodem as autoridades, a menos que os pedaços de conhecimento venham beliscar a propaganda instituída.
Só que o andamento do tempo deixa cicatrizes, por mais entranhada que seja a recusa em admitir que o tempo não está parado. As palavras que se expuseram à hierogamia podem esbarrar na presbiopia das almas a elas expostas.
(Do dicionário, presbiopia, o mesmo que presbitismo: perturbação da visão originada pelo endurecimento do cristalino que não deixa ver com nitidez os objetos próximos, e que tem lugar com o avanço da idade; vista cansada.)
Os mecenas das palavras não escondem que estão túmidos por terem audiência. Os que têm audiência. Os outros, não capitulam: sentem-se túmidos ao relerem o que escreveram. Nem que sejam a única audiência das suas palavras escritas.
(Do dicionário, túmido: orgulhoso, emproado.)
É esse orgulho próprio exsurgido que vem para o mapa das desafeições. Antes de serem dadas à estampa as suas palavras, na véspera, o autor diz-se catecúmeno. Mesmo que seja da ignávia que se alimenta a autoria. A obra pode ser plúmbea para o escasso público que lhe deitou a mão, mas o catecúmeno sabe-a limbífera. As páginas são nédias (para que delas não se diga serem um tédio). Poderão os prândios não ser acessíveis como paga da frequência dos escaparates. Não se importará que dele digam ser pernóstico, pois não são as palavras dos outros que desatam as consumições interiores, são as palavras de que é fautor. Desde que lhe garantam a extinção dos anexins, não se importa de arcar com o estipêndio da injúria. Nem com a acusação de acatalepsia.
Pois, no fundo, tudo o que lhe compete é desdourar os vitrais que os ufanos passeiam a tiracolo. É essa mnemónica que desmente os videirinhos das maravilhas subjacentes. A eles, o rosto puído exposto ao escarnecer dos lúcidos, ainda que os lúcidos sejam uma minoria (dizem: esclarecida, mas não há meio de o esclarecer). Só para exalçar o céu baixo e pesado que se abate sobre as nossas cabeças, como se fôssemos eidéticos (mesmo os que não o sabem).
(Do dicionário, com o obséquio do leitor: exsurgido, catecúmeno, ignávia, plúmbeo, limbífero, nédio, prândio, pernóstico, anexim, acatalepsia, desdourar, exalçar, eidético.)
26.6.23
O comboio que partia vazio
O cais puído animava os viajantes. Eles partiam e chegavam, entrecruzavam-se numa miríade de destinos. Eram tantas as casas da partida e da chegada, mais ainda as casas da chegada que se haveriam de constituir casas da partida. Os comboios não dormiam. Mesmo quando as composições estavam estacionadas num ramal, os comboios estavam sempre de piquete.
Todos os dias, o comboio das catorze e quinze partia sem gente. Só tinha três carruagens. Eram de mais. Mas eram sempre atreladas três carruagens. No cais, só se anunciava a hora da partida. Era o único comboio que partia sem destino. Não se sabia se era por isso que ninguém embarcava no comboio das catorze e quinze. E ele iniciava a marcha, pontualmente, para a viagem de cinquenta e cinco minutos. Zelosamente vazio. Nem sequer tinha direito a revisor: já todos sabiam que o comboio ia sempre vazio.
Fosse dia de semana ou fim de semana, o comboio era calçado nos carris e ultrapassava as junções, os apeadeiros, as estações, ia deixando a paisagem para trás. Parava em todas. Os passageiros que aguardavam pelo comboio esperavam pelo comboio que vinha a seguir. O comboio vazio arrefecia a marcha antes de estacionar no cais, era como se olhasse para os passageiros que aguardavam pelo comboio seguinte e suplicasse para não perderem tempo, para se servirem dele. Se fosse preciso, levava-os aonde fosse preciso. Nem que tivesse de se desviar da rota e fizesse um atalho. As pessoas eram surdas à convocatória. Ou a súplica do comboio perenemente vazio não se fazia ouvir, por mudez sua.
Cinquenta e cinco minutos depois, o comboio encontrava-se com o destino. O destino parcial. O comboio tinha de fazer o caminho de volta. Vazio, porque não era aceitável, aos olhos dos cânones da igualdade, que o comboio fosse vazio para um lado e viesse com passageiros na volta. Ele não se importaria, aprendeu que a sua serventia é transportar passageiros. Nunca se perguntou ao comboio sempre vazio se ficava angustiado por ir sempre vazio.
Quando chegava ao cais da partida, agora em forma de chegada, as carruagens eram desmobilizadas e levadas pelos funcionários da manutenção para outras linhas, para outras composições, para outras paragens. As carruagens sentiam então o calor das pessoas, já sem o cimento de serem o comboio das catorze e quinze.
O comboio partia sempre vazio. Mas nunca chegou a ser um comboio fantasma. Só faltava decretar as catorze e quinze uma hora deserta.
23.6.23
Por linhas tortas (short stories #426)
Descansam, guerreiros que não deviam merecer o descanso. Atirados para a batalha – como se diz: carne para canhão – e vão, lisergicamente robotizados, à espera do arsenal atirado ao inimigo, ou à espera do dia fatal que os rouba à vida. Diz-se que se escreve por linhas tortas quando se invocam as vias metafísicas, esses ínvios caminhos que convocam justiças repostas quando as mãos imensamente justas de uma divindade entram no jogo. Ninguém contesta as linhas tortas onde se escrevem páginas pelos vistos belas, autênticos hinos à justiça assim dicionarizada pela divindade. Ninguém se opõe; menos os dissidentes da metafísica, menos os que duvidam da justeza da justiça aplicada pelas mãos divinas. Os olhos estremunhados que perseguem a tarde não conseguem dissipar a névoa que embacia o horizonte. Não sabem do dicionário dos deuses. Descobrem que não está publicado; não terá sido a sua qualidade aferida com suficiência pelos candidatos editores, que deixaram a publicação deserta. Talvez a justiça divina seja uma invenção dos que precisam de a invocar. A justiça implacável dos vencedores. Que, por o serem, são os engenheiros civis dessa justiça. Os derrotados passam à História. Silenciados, a sua narrativa não chega à hasta pública. Escrevem nas linhas direitas as metáforas tortas, que não arrebatam audiências. Sua, a justiça negada; por linhas direitas, escrevem a torto a justiça sem vencimento. A não justiça. Emoldurada é a justiça dos que protestam a seu favor a vitória no pleito. Sobem ao vértice da pirâmide onde as muitas camadas de jogadores se distinguem num tabuleiro sem remédio. A justiça que se faz pelas linhas tortas vira o tabuleiro do avesso. Depois – quem sabe? – de uma súplica às entidades divinas. Só elas conseguem a redenção que repõe a justiça. Ou é tudo olhado do avesso, e tudo se escreve por linhas tortas. A apócrifa justiça.
22.6.23
Adubo
Os agricultores de antanho eram mais sábios do que os cientistas de amanhã. Descobriram – sem, todavia, saberem – os prolegómenos do doping. Os adubos que retiravam dos excrementos das reses eram o doping que as terras precisavam para serem férteis e oferecerem aos agricultores, em paga, uma colheita farta. E depois, os agricultores, obedientes a deus como eram, agradeciam o legado divino. Sem saberem, endossavam para deus a oferenda do doping que avivou a fertilidade das terras. Deus foi o inventor do doping.
Se não fossem os excrementos das reses meticulosamente recolhidos e vertidos e amalgamados nas terras, elas não eram férteis. Desde cedo, o doping existiu. Mas dantes, o adubo, que era o doping das terras aradas, não era ilícito. A fome exigia mantimentos e era a terra que os dava. O passado foi um desfilar de pestes e fomes e não se queria um futuro herdeiro de tais estigmas. Os fins justificavam os meios. As terras nunca se queixaram de serem aradas com recurso a expedientes escatológicos. Mas as terras nunca tiveram voz. Os tutores das leis nunca atribuíram ao adubo a linhagem de um doping que na altura não existia.
Hoje, o doping é doping e os sacerdotes da verdade perseguem-no. Os adubos ficaram à mercê da manipulação da ciência. Vale a química que libertou as terras do enxovalho dos pútridos excrementos das reses. É na mesma doping. Mas os fins continuaram a justificar os meios, hoje com diferente ontologia. Já não são as fomes, que estão em vias de extinção, que reclamam o fechar de olhos aos fins que justificam os meios. É a ganância de espremer o máximo das terras, para que se encham comboios de excedentes de alimentos destinados à destruição ou ao perecimento. E ninguém protesta contra este doping, que só não se chama doping porque os costumes ordenaram que assim não seja.
Se houvesse igualdade, os peritos da química que manipulam os elementos para conseguirem milagres, os sucedâneos de deus (ou os deuses que só o pudor impede que assim sejam chamados por quem deles depende), podiam continuar a aperfeiçoar a bitola do doping aplicado ao desporto. Ao menos, caía a máscara da hipocrisia e passávamos a ser espetadores de desportistas em levitação sobre-humana, sem pudor de esconder outra escatologia que apenas os costumes, tão enraizados, protelam sua estadia convencionada: a escatologia da batota não revelada.
A batota não é batota quando os costumes concordam que não seja.
21.6.23
Impressão digital
A aurora boreal estava perdida, já não sabia da geografia. As pessoas, extasiadas com o erro da aurora boreal. Ou talvez ela apenas quisesse ser democrata, trazendo a outras latitudes o fogo de luzes que esvoaçam no céu sobre as pessoas boquiabertas, arrepiadas com a coreografia desenhada no céu.
Alguém ousou pedir fiordes, elfos, renas, uma miríade de bagas silvestres depois do degelo, rios indomáveis, serviços públicos de que valha a pena ser utente, mesmo que fosse contra impostos absurdos. Alguém quis saber do espírito aberto, sem as algemas do catolicismo atávico e meticulosamente castrador. Queriam que a civilização encontrasse outras cores, possivelmente outra bandeira – outro hino, se é que os hinos e as bandeiras ainda importam. Queriam fundir o sangue fervente do desimpério latino com a frieza glacial, introspetiva, contemplativa, dos povos habituados a auroras boreais. Queriam que as falas fossem espartanas, pois a singeleza cobria as palavras poucas de sentido muito. Acreditavam que a visita da aurora boreal era uma epifania para ateus. Acreditavam que quem vive sob a tutela das auroras boreais aprende o significado de belo. Para aprenderem a sublimar o belo e a desterrar as terras brandas onde águas sulfurosas amordaçam a respiração. Queriam, apesar de tudo, noites demoradas por dias a fio, quando o solstício de Inverno se espraia no calendário. Pois sabiam que no oposto o solstício de Verão era a sagração de noites sem noite, a magnanimidade de dias sem a interrupção da noite.
Depressa as pessoas caíram em si. A aurora boreal fora um sonho. A epiderme levantava-se em sucessivas camadas que desflorestavam a angústia. Os sonhos eram o sintoma do desagravo da angústia. Pudessem as vozes ecoar alto nos miradouros arrematados às tempestades; pudessem os corpos ser os hinos que importassem, e neles asas metafóricas ousassem verter no conhecimento matéria abundante, a melhor abastança de que havia ciência; pudesse tudo à volta ser desprovido de medo, para enfim deixarmos de ser as meras metades que somos, nem que fosse preciso desprender as cortinas que enfeitam o baço olhar; pudessem os aeroportos ser territórios mentais onde se chega mercê da vontade irrefreável; pudesse uma orquestra de violinos adejar sobre o sono, fermentando-o com os sonhos de auroras boreais avulsas; pudessem os vulcões adormecidos sussurrar as quimeras em falta, ao acordar. E o olhar fosse a impressão digital de uma aurora boreal.
Seríamos então vizinhos do gelo e provaríamos o elixir da madurez adiada. Promitentes de uma impressão digital resgatada ao futuro, para dela se fazer o hesterno que levantasse até as vontades suspeitas. Até sermos algo depois, um sangue porventura contrafeito, depois da sangria que nos despojasse da pele exaurida. Até sermos forasteiros por dentro de nós. Ou embaixadores, sem sairmos de casa.
20.6.23
E se lhe dessem uma cauda para ele andar atrás dela?
Mote: Homem dispara acidentalmente contra si próprio depois de sonhar com um intruso em casa
Já não se pode confiar nos sonhos. Eles são invadidos pelo seu próprio sonambulismo e os procuradores dos sonhos nem sabem onde é a terra queimada, o lugar onde os sonhos são desaprovados por ser terra infértil. Do lado de cá da barricada, os reféns dos sonhos, os que deles conseguem tirar uma bissetriz que seja, não podem confiar nas sombras projetadas pelos sonhos.
À exceção dos poetas e de uns quantos aluados, poucos dependem dos sonhos para se manterem vivos (ou com ânimo para vida). O trono dos lugares-comuns dirá, insuspeito do lugar que ocupa, que não devemos dar asilo aos sonhos. Se formos seus hospedeiros, não demora a sermos colonizados por eles. É como se passássemos a levitar e não soubéssemos do paradeiro do chão onde acontece a realidade. “A realidade”; e o que é “a realidade”? Não será um pesadelo que se insurge contra a bonomia dos sonhos?
Se pela tarde virmos uma rã sentada à mesa da esplanada ostentando feéricos óculos de sol enquanto beberica um gin tónico (está na moda) e aprecia os transeuntes, não se estranhe que a rã esteja a classificar a estética do que o seu campo de visão alcança. Se a rã fosse à casa-de-banho (não precisa, consegue reter os líquidos), corria o risco de ser calcada por um camionista boçal que viesse descarregar a bexiga do litro de vinho que acompanhou o almoço, ou por um cidadão desprevenido que, com horror a répteis, se assustasse com o batráquio e instintivamente o pisasse até atestar o esmagamento total (e fatal, para a rã). Ninguém contaria à imprensa. O camionista, por distração etílica. O outro, horripilado pela sua brutalidade (e a abjurar os malditos instintos, que a meio da viagem já estão a fazer mal a quem a eles se entrega).
Não se diga da rã burguesmente na esplanada que é surrealismo. Para o campeonato do surrealismo entrou há dias, e diretamente para o top, o canguru que corria velozmente (ou não fosse canguru) pelas ruas vizelenses. Os de Guimarães é que a sabem toda: os vizelenses quiseram a autonomia e conseguiram ser município. Os vimaranenses não queriam a vergonha de saber um canguru a desfilar pelas ruas que antes foram domínio do município. Essa bizarria fica por conta dos de Vizela, que é destas rivalidades absurdas que a gente meã ocupa o tempo (à falta de uma vida própria devidamente condimentada). Um canguru fora do habitat, nos antípodas do seu habitat, já cá canta para o bornal das coisas surreais. Agora, os de Guimarães podem escarnecer dos vizelenses. Talvez, até, apodá-los cangurus.
O pobre homem atraiçoado pelo sonho teve o azar de um ricochete mal calculado. O sonho estava potente. A bala que acerta na perna afinal doi tanto. O pior, é que as autoridades redigiram um auto porque o cidadão atraiçoado pelo sonho ardiloso não tinha licença de porte de arma. Ó ironia maldita, que encomendaste um sonho lisérgico com fantasmas pelo meio e ainda alinhaste os astros de modo que a bala disparada fosse autoinfligida. E o pobre homem, duplamente pobre, na condição simultânea de agressor e de vítima de si mesmo.
Antes se pressinta o passear com uma cauda acoplada aos fundilhos das costas num rodopio incessante, a tentar apanhar a cauda com os dentes. Talvez não vá tão alto na escala do risível.
19.6.23
Quem quer contar segredos?
Há um mercado dos segredos. Um mercado que os vultos visitam, furtivamente. Emprestam segredos contra juros. Quem os paga são os que não vivem sem açambarcarem segredos alheios, porque são estes segredos que animam as suas vidas. Os segredos dos outros são o oxigénio sem o qual as vidas dos que pagam juros pelos segredos seria um sacrifício.
Os segredos são inventariados. Há uma categoria dos segredos avulsos. Quem arremata um segredo avulso não sabe sobre que é aquele segredo. Mas não são assim todos os segredos – matéria por revelar, uma incógnita a pesar sobre a curiosidade dos demandantes, até ser descoberto? No mercado dos segredos, há os segredos inventariados por categorias e os segredos avulsos. Os que não querem aparecer nos segredos que pertencem a uma categoria. São os segredos mais anónimos.
As pessoas gostam de experimentar o mercado dos segredos. É o que se diz, de segredo em segredo, segundo fontes credíveis. Corre o segredo que não há vivalma que não tenha os seus segredos, tanto é o manancial que alimenta o mercado dos segredos. E como estes são tempos da privacidade dissolvida por iniciativa de quem a devia tutelar, os segredos já não são segredos porque nunca chegam a ganhar espessura de segredos. Aparecem imediatamente no mercado dos segredos, às vezes contra a vontade dos seus fautores, por intermediação de uns piratas dos segredos que se movem nos interstícios das palavras e furtam, ao acaso, segredos em barda.
Como é apanágio do socialismo vigente, a longa mão visível estendeu-se ao mercado dos segredos. A pretexto de ser matéria muito sensível, os reguladores do mercado dos segredos querem impor regras de receção e de divulgação dos segredos. Não deram conta do óbvio, os infatigáveis engenheiros sociais: se os segredos são segredos, são-no sob o alto patrocínio da igualdade, os engenheiros sociais não têm privilégios na catalogação e na revelação dos segredos. Não sabem deles em primeira mão.
No mercado dos segredos, fica-se a saber que todos os interessados entram com um véu sobre o rosto e à saída estão de rosto descoberto. Quer os que vão depositar os segredos, quer os que deles participam na condição de voyeurs. O mercado dos segredos é uma contradição de termos.
16.6.23
On the steering wheel
Leves as mãos que degelam o fogo incrustado na alma. O periscópio desembaraça-se das algas e anuncia a lucidez possível. Não se diga que são muitos os desmodos, que a palavra triunfal tem serventia máxima. Congeminam-se avenidas pressentidas pelos rouxinóis abastados pela tarde modesta. Os rostos parecem todos luminosos. Estão luminosos. Nem que seja mentira.
Alguém tem de ser timoneiro nesta nave que não sai do chão. Olham uns para os outros, na exímia medida de desresponsabilidade – um outro qualquer que tome a empreitada em mãos. A nau não viaja enquanto não houver um timoneiro atribuído. Mas todos sabem que se espera da nau uma viagem sem sair do lugar. Talvez por isso, ninguém quer o leme. Se outros fossem os preparos e houvesse um lugar para ser demandado pela nau, um deles que fosse o voluntário timoneiro. Esta é a esperança que cai bem num tempo hipotecado pela desesperança.
E, no entanto, todos querem apenas ser passageiros. Tomam os respetivos lugares e ficam à espera do timoneiro. Esperam e esperam. Uns adormecem, outros leem umas páginas de um livro, de um jornal, da comezinha publicidade, outros não disfarçam a impaciência pela espera, outros demoram-se na paisagem estéril. Todos querem chegar ao lugar que a nau ajuramentou. E todos estão à espera que seja um deles – mas nunca o próprio – a exarar a responsabilidade de tomar o leme.
Por este andar, a nau vai ganhar teias de aranha. Os passageiros, esquecidos de quem são. O tempo será consumido numa espera sem órbita. Os lugares não saem do lugar – lamentou-se um dos passageiros esquecidos no terminal. Os degraus da escada tornam-se inacessíveis. Parece fácil ultrapassar um após o outro e, todavia, estão todos congelados na tela. Ninguém quer ser cobaia; ou, talvez, ninguém está em condições de fazer com que os outros sejam cobaias através dele. Já não se lembram que lugar foi ajuramentado pela nau.
A nau temperamental mantém as amarras ao chão. O leme continua deserto. O lugar onde a nau está ancorada tornou-se deserto. Sob o sol torrencial, o leme ficou abraseado. A incandescência perdura pela noite fora, pelos dias fora. Ninguém quer uma queimadura de primeiro grau nas mãos. Estão todos sitiados pelo deserto.
15.6.23
Tira as pedras do caminho
Ateado o fogo sindicável, as maçanetas das portas derretiam ao contacto com as mãos. Era como se as mãos fossem o combustível que removia os embaraços e agissem como mecenas do futuro.
Para demandar o futuro, era preciso um caminho inteiro. Um caminho que não admitia rota nem ficava à mercê de instrumentos de navegação. Era por tentativa e erro. Sem temor do erro, matéria fungível para quem se atirava de cabeça aos dias que vinham consecutivos na maior sagração da existência. O presente era o santuário do futuro, como se nele viesse a colher os juros.
Era um caminho inteiro a trespassar as pedras que impediam a passagem. As mãos saídas de vulcões em erupção trespassavam as pedras porque havia vozes insondáveis que murmuravam a transcendência do porvir. Sabia-se que viver cada dia de cada vez era prometer toda a solenidade ao futuro – pois o que era o futuro se não a exaustão de cada dia em forma de presente?
Mas havia pedras paquidérmicas que resistiam à ação dos procuradores do caminho. Elas rimavam com uma conspiração, uma conspiração nem que fosse idealizada para provar que há pedras imateriais que são mais pesadas do que as pedras que ostentam tonelagem. As mãos cerzideiras não capitulavam. Podiam passar uma longa jornada a desmontar a resistência das pedras imensas. A recompensa da não capitulação era o desfazer dessas pedras a uns meros quilos, prontas para serem atiradas ao desfiladeiro.
As mãos arquitetas eram temidas pelos obstáculos que impedissem a passagem. Pedras, ramos depois de tempestades (ou ramos apenas senescentes, à espera do golpe fatal), caudais de ribeiros alimentados pela chuva incessante, um terramoto que redesenhou a topografia – todos eram vírgulas que não assombravam o caminho que estava a ser feito. As mãos arquitetas eram invencíveis, a menos que fossem vencidas pela morte irreparável.
Atrás delas ficava um chão aplanado. Ficava, em legado, uma estrada que podia ser demandada pelo futuro. O juro do passado para memória futura.
14.6.23
A casa da partida (regresso)
Em manhãs de bruma, o marco geodésico reconcilia a alma. Perde-se a atalaia metódica dos medos e das angústias, não fossem convocados por destino. Em vez de vultos arqueados sobre os alicerces, havia apenas as palavras adocicadas que serviam de rumo ao olhar desimpedido.
Pela tarde, no equinócio do dia, eram validadas todas as dúvidas persistentes. Sem elas, tudo deixa de fazer sentido. Era como ter a casa da partida como casa da partida e o modo não encontrava outra solução. Ao contrário do que se podia julgar, a casa da partida não era uma saudade. Não era uma ilusão, como se houvesse uma dissidência com o presente. A casa da partida era o endereço onde tudo se afere quando o equilíbrio foi devassado. Não é apenas um fingimento.
Desde a casa da partida, era possível regressar a um lugar mental para saber que não se podia materializar esse regresso. A casa da partida era a procuração do tempo ainda ausente. Nela se situava o estirador que era preciso para a arquitetura de uma saudade futura, ao jeito do poeta que popularizou a imagem. Era da casa da partida que tudo voltava a acontecer. Um recomeço, mesmo que o caminho de regresso à casa da partida não fosse um labirinto. Às vezes, a casa da partida é apenas contígua ao lugar existente, por muitos que tenham sido os caminhos percorridos e os lugares demandados. Nem sempre a medida do lugar presente é a lonjura que o tempo insinua.
Um regresso não é o lugar nostálgico que dialoga com o tempo pretérito. É a casa da partida a que é preciso ir para não sermos reféns do acaso, no pouco da vontade que podemos arregimentar contra o jogo de acasos que nos jogam no tabuleiro das circunstâncias. Sem contar com a turbulência que não conta com a nossa vontade. Sem contar com a extinção da luz que nos depõe no avesso da vontade, à mercê de um labirinto onde se compõem desregras.
13.6.23
Não lembra ao diabo (mas ninguém se lembrou de perguntar ao diabo)
Era preciso virar o labirinto do avesso. Sangrar toda a luz que os satélites deixavam em forma de céu. Acarinhar os gatos vadios (se eles deixassem). Povoar as estrelas com o perfume da alma, para que elas não ficassem cadentes e nós decadentes.
O maestro dizia, com a bonomia atípica dos maestros, que hoje a orquestra tocava sem pautas; tocava no fio da navalha, como o povo instruído em lugares-comuns costuma metaforizar. Se houvesse um poeta por perto, e se a inspiração não estivesse pelas horas da morte (outro), seriam estrofes a substituir-se às pautas. A música seria a mesma? Ninguém soube responder.
Na luz do dia, as estrelas estão a dormir. Ou a enfeitar a noite de outras longitudes, caso as nuvens não estejam a embaciar a noite. Às vezes, a lua junta-se à festa. E os poetas não dormem. Acreditam na aura de um céu cintilantemente noturno. Vão ao fundo do céu, como se fosse preciso industriar o seu avesso para resgatar as palavras que compõem uma quimera. Os músicos que não estiverem acordados, assistem. Talvez alguns tenham coragem de ensinar meia dúzia de coisas ao maestro habitualmente irascível. Nem que seja preciso virar o labirinto do avesso.
No intervalo do ensaio, os músicos juntam-se na porta dos fundos. Uns fumam (à revelia do maestro ditatorial), outros dão uns passos para trás e para a frente, a memorizar a peça que vão a caminho de ensaiar, outros falam ao telemóvel uma plêiade de coisas com diferentes pessoas. Um gato vadio passa ao largo. Não dá confiança a pessoas – é vadio. A violinista principal agacha-se para convencer o gato a receber um afago. O gato hesita. Meio passo para trás, meio passo para a frente, aninhando-se quando a violinista dá um passo em frente, sem pose agressiva. O gato extasia-se com as festas suaves da violinista. Hoje podia-se gabar. Não é todos os dias que um gato vadio recebe festas de uma artista. Os dedos de uma artista são sedosos, as festas sabem como nunca souberam ao gato vadio.
O maestro desconfiou que a companhia se tinha ausentado pela porta dos fundos. Juntou-se aos músicos, que o receberam a medo. O maestro queria partir o gelo. Andava há dias a pensar nisto – partir o gelo, que do degelo teria de ser feita a relação com os músicos da companhia. Ainda se lembrava do seu mentor, como dizia, entre dois copos de vinho e muito fumo vomitado pelas narinas, que não queria que o respeitassem, mas que dele tivessem medo. E causava-lhe impressão a arrogância, não entendia como podia ser o cimento de uma relação com os músicos da orquestra. Uma amiga dir-lhe-ia, depois desta confidência (só possível porque o vinho adulterava os sentidos), que não lembrava ao diabo que o mentor tivesse dito semelhante coisa.
As palavras do mentor ecoavam enquanto o maestro se divertia, descontraidamente, com a diversidade de coreografias dos músicos da companhia durante o intervalo do ensaios. Aproximou-se da violinista que ainda estava de cócoras a afagar o gato vadio, juntando-se-lhe na pose. “Nunca tive um gato. E apetecia-me ter um. Ajudas-me nas coisas práticas?”, disse, com voz estranhamente carinhosa, perante a surpresa da violinista, não habituada à proximidade do maestro, enquanto o seu pensamento murmurava, espontaneamente, “esta não lembra ao diabo”.
12.6.23
O espetáculo foi adiado por dificuldades técnicas
Podia ser como nas corridas de automóveis, a bandeira amarela desembainhada quando o perigo fareja à saída de uma curva, não a deixando ser traiçoeira. Mas fora das corridas de automóveis não há cartas registadas com aviso de receção. É uma das grandes fragilidades de deus (a ser provada a sua existência). Ou nossa, enquanto a epifania não for retirada da lava.
A matemática e os modelos com a ajuda da cada vez mais intensamente inteligência artificial deviam ser inerrantes. Por exemplo, para as previsões do tempo não estarem à mercê de erros de cálculo, ou de interpretação (culpa que só se abate sobre os humanos), e não ser possível a natureza atraiçoar os peritos – e as pessoas todas, de caminho. Com tanta e artificial inteligência, está por explicar a sua falência quando a sofisticada ciência cede ao ímpeto da natureza. Não se entende como a natureza pode mais do que a inteligência artificial.
O ideal era não haver cancelamentos por intempéries, ou por outros cataclismos imputados à força bruta da natureza. É quando a natureza se liberta do jugo dos humanos para a devida colocação das coisas em seus lugares: as pessoas é que estão à mercê da natureza, não é ela que se submete à sindicância escrupulosa da tecnologia no seu estado mais avançado. Porque ninguém gosta de cancelamentos. Mas a perfeição não gravita na nossa órbita.
Ou podia-se apenas atirar uma mnemónica para cima da mesa, como se fosse a eterna tela mental a servir de fundo ao pensamento: nós é que somos a fragilidade; a natureza, o agente indomável. Por mais que fiquem emoldurados – e com a prosápia típica de quem admite em silêncio, sem reconhecer por palavras, a sua fragilidade –, sucessivos episódios em que a natureza se deixa domar.
Só para sermos reféns das nossas ilusões e adiarmos a vingança da natureza, quando a natureza se cansa de nós.
9.6.23
Às torres de Babel
I. Quando éramos pequenos, tomávamos Melhoral sem estarmos doentes. Nenhum adoeceu por tomar tanto Melhoral. Nenhum chegou à idade adulta a precisar de aditivos ilícitos. O doping não era para nós.
II. As cordas dos violinos pareciam teias de aranha. Os dedos adestrados dos violinistas tocavam no verso em que chegava o vento.
III. Sabia que, no futuro, fugia dos vultos perenes que assombram as almas apequenadas. Dizem que as pessoas começam a minguar depois de certa idade. Era testemunha em carne viva: sabia que a sua alma fora maior, como sabia que ela ficara puída com a controversa desaliança com o tempo. Dele não se esperassem conselhos. Era o desaconselho em pessoa.
IV. Pai, por que ainda há monarquias? O pai não sabia como responder à filha. Não podia falar de atavismos, ou de anacronismos, ou de formas datadas de reger um país. Eles não eram exclusivos das monarquias. E se a filha lhe perguntasse pelo inventário das fragilidades da democracia, será que pedia conselho sobre o seu contrário?
V. Pela matrícula, o automóvel era novo. E já estava em cima do reboque. Às vezes, as ruínas morrem à nascença.
VI. Aquela pose grave, denotando a natureza tão séria do discurso que se preparava para ler, o olhar que parecia passar em revista cada pessoa sentada na plateia, o olhar que pedia contemplação e, no final, imperativa ovação. Era muita a forma, mas pouca a substância que rimava com tanto formalismo decadente. Há quem não passe de um enfeite, com pouco para dar além do papel de embrulho. E, todavia, fazem-se passar por senadores ou candidatos a sê-lo.
VII. Por que tinham as mulheres antigas sete saias e depois pariam antes de serem casadoiras? (Das perguntas metodicamente alinhavadas pela filha.)
VIII. Dizia: estou empenhado num esgrima contra os meus paradoxos. Sinto-os a adejar, arfando o ar tropical que enche os corpos de suor pegadiço, sinto-os como se fossem pregas entre as vírgulas que compõem as frases, e não os sei nomear. Já chego a acreditar que é melhor deixar os paradoxos levitarem sem paradeiro certo e ser por eles levado até a uma enseada que mergulha no poente. Só para ver se à noite as estrelas que ocupam o céu enegrecido emprestam uma pista sobre os paradoxos.
IX. O armazém estava cheio de mercadoria por expedir. As pessoas tinham medo de usar o verbo comprar. Não sabiam do futuro. Nem lhes competia saber, que o grande líder, de braço dado com os ajudantes que industriam as encomendas do grande líder, tinham anunciado que os maus pressentimentos são maus, devem ser atirados borda fora.
X. Querias uma torre de Babel com um roteiro para não te perderes? Ou querias que a torre de Babel fosse um mistério à prova de sondagens, permanentemente inacessível (só assim condiz com a sua cerviz)? Antes de responder, advertiu: aquela não seria a resposta esperada pelos que tutelam os costumes. E respondeu: queria que a torre de Babel fosse à prova de incêndios e de inundações. Para que se mantivesse viva e democraticamente abrisse as portas aos interessados.
8.6.23
Arroto ao alto, para não parecer mal
Devia haver um medicamento contra a soberba. Devia ser fungível o gesto fúnebre em que se desfaz a vaidade descalculada. Elevadores supersónicos consumiriam o magma da arrogância. Os seus intérpretes, deixados à reeducação por meios próprios.
Franziu o sobrolho assim que ouviu as estrofes cantadas vertiginosamente por um rapper da moda. Como é possível a cacofonia? – mas esse era um problema seu, que era hostil aos modismos e se insurgia como meio de defesa (a mania de querer ser diferente). Ele há sempre privilégios, não há como combater o insustentável eflúvio de desigualdades. Pobres dos ascetas da igualdade, desafiados pela feição tenebrosa do mundo e pelas pessoas que passam por cima do seu semelhante se essa for a caução para os proventos materiais ou para uma qualquer forma de efémera reputação. Pobres são, que ou afocinham no mundo horrendo que invalida o ideal em que vegetam, ou se refugiam num estado de negação que finge serem diferentes as coisas do seu estatuto.
Antes de atravessar a avenida, enquanto espera que o semáforo verde derrote o vermelho, detém-se na figura que empresta as cores ao semáforo. É um boneco estilizado que pulsa dentro de um coração, ou, vendo melhor, o boneco é um coração que o colonizou e arfa o batimento cardíaco que o suplanta. Ao lado, uma rapariga conferencia com alguém ao telemóvel. Está angustiada. Desconfia que o consorte a traiu.
Na parte mais movimentada da cidade, tem de circundar o estaleiro a céu aberto. Os condescendentes, sempre tributários de um otimismo que irrita, comprovam as obras contínuas como sinal do progresso agendado para um dia destes (ou uma década) destas. Quem deles discorda argumenta que os contínuos estaleiros a céu aberto sinalizam o atraso persistente de que é difícil desligar. Há sempre mais outra obra, e uma obra em cima de uma obra que acabou de ser encerrada, um palimpsesto de obras extinguiu a feição da cidade e o silêncio geral parece sinal do consentimento. Dizem que é para bem dos turistas e que os turistas são o visto de salvação da cidade (e talvez, até, do país). Os habitantes da cidade não contam. O edil é acusado de trair os seus constituintes. (Ou de ter interesses, instalados ou inconfessáveis, na indústria do turismo. E assim trair os seus constituintes.)
Uma varina poveira – ainda há varinas poveiras – transpira energia inesgotável. A tarde acabou de ser parida pela hora do almoço e a mulher continua a apregoar a safra contida no cabaz. A voz da varina não acaba. A meio da conversa com uma senhora reformada, enquanto a clientela espera por atendimento (a senhora reformada queria o conforto de uma conversa com alguém), a varina deixa cair que está a pé desde as três da madrugada. Houvesse quem soubesse do exemplo da varina para não sobrestimar o seu próprio cansaço.
Dizem que as igrejas são lugares de recolhimento. Exílios pessoais. Para os crentes, santuários onde celebram a sua fé. As igrejas servem para a função procurada por quem as procura. Não há notícia de igrejas onde esteja afixado, e em letras garrafais, que é reservado o direito de admissão. Já o rio que corta a cidade em dois não é esquisito. Quem quiser pode banhar-se nas suas águas. O rio não responde pelas bactérias que possam ser invasoras dos corpos dos expeditos que procurarem as suas águas. Por isso o rio não tem sacerdotes a falar em seu nome.
7.6.23
É melhor o prato vazio do que as lentilhas que te queiram oferecer
Há os desconfiados da generosidade que os outros praticam. Não acreditam que a bondade seja genuína. Ele há tantas segundas e terceiras e quartas intenções, e assim sucessivamente. Metem nos ombros a desconfiança metódica para não serem vítimas da ingenuidade. Ou desconfiam, porque a mercantilização que tomou conta do sangue da sociedade exige que tudo seja mercável. Até os favores que se ficam a dever, com os juros devidos pelo tempo decorrido.
Diz-se: não se recusa um prato de lentilhas. Não fica claro quem não deve recusar as lentilhas: é quem é demandado para as oferecer, ou o destinatário da liberalidade? Para não serem feridos os ditames da igualdade, dir-se-ia que a incumbência rege ambos por igual. Outros, com propensão para o socialismo, certificam a assimetria: é sobre os abastados, ou os que, não o sendo, têm posses para alimentar a solidariedade, que é validado o encargo. Ainda há os terratenentes que não aceitam os recursos esbanjados, exigindo dos recetores a mesma diligência dos que exercem a bondade. Não devem deitar as lentilhas ao lixo, há quem esteja à míngua e não coube no critério da distribuição das lentilhas.
A meio da meditação, a ninguém importa perguntar se quem recebe o donativo gosta de lentilhas.
Das hipóteses terçadas, considere-se a validade dos que desconfiam da prebenda porque não estão seguros que o favor não seja cobrado mais tarde. Têm legitimidade para suspeitar do sinalagma. A generosidade não combina com segundas e terceiras e por aí fora intenções. Ninguém pode medir as intenções do outro, a menos que peticione para o declarar – e, mesmo assim, não garante que o declarado não seja mentira. E se à generosidade corresponder o ónus diferido da contraprestação, não se atesta com que juros o favor vem a ser cobrado. Estes contratos não são contratos (ou é a generosidade que não é contratualizável). Se se mantiver elevada a cancela da desconfiança, quem pode garantir que a generosidade não vem a ser cobrada com juros usurários? Tão usurários que não se sabe como pagá-los.
É melhor o prato vazio do que as lentilhas que te queiram oferecer: com o prato vazio, és o tutor da escolha, decides o que vai preencher o prato. E não ficas a dever favores (e juros incuráveis).
6.6.23
Protesto contra as ruínas colonizadoras
Com o zelo que nos é devido pela impertinência da não capitulação;
com a destreza de quem tem âncora, a rebelião assestada contra os suseranos das coisas irremediáveis;
com o amparo de uma vontade indomável;
com a obstinação que se ergue contra as marés insubmissas;
com o arnês todavia puído;
com o beneplácito das divindades que não temos a certeza de serem nossas assistentes;
com a clareza que nos é devotada pela noite que se arrasta pelas portas adentro;
com as tesouras terçadas que boicotam os boicotes que contra nós se levantam;
com a posse das metáforas que se jogam a nosso favor;
com os mecenas que desarrumam as convenções firmadas em leis de bronze;
com os embaixadores que se manifestam em silêncio e os bispos de religiões omissas;
com a carne ao rubro que se subleva contra as doutrinações dardejadas;
com as luas que se oferecem nossas procuradoras;
com a purificação da poesia em nosso socorro;
com a invocação dos mares sem dicionário que entroncam na fala;
com as armas possíveis que amanhecem no estirador dos sonhos,
protestamos:
contra as ruínas que esbracejam como se fossem fantasmas sem medo;
contra os fantasmas que se embebem no sangue para nos possuírem na invalidez das nossas reservas;
contra os ossos tomados por núncios da decadência;
contra os delatores que querem tudo reduzir a ruínas;
contra a pele colonizada por conspiradores da senescência;
contra o esmaecer que oblitera as cores, deixando a vida refém dos muitos avulsos que se jogam num tabuleiro sem nome;
contra os que se entregam aos mastins que, ufanos e cinicamente sorridentes, são como juízes peritos em penas capitais;
contra os atributos do tempo;
contra a verosimilhança das prescrições;
contra as estradas que se insinuam, promitentes de fortunas sem números, e, contudo, não oferecem toponímia;
contra todas as ruínas que estilhaçam a medida do tempo na tela onde se desenha o princípio geral da finitude;
contra a condição, a irremediável condição, de sermos em vias de extinção,
protestamos
e deixamos o protesto lacrado em solene letra marcada a ouro, sem procuração de outros nomes, sem medo de represálias, sem medo de medo algum.
5.6.23
A métrica dos exilados
Podia ser que houvesse furacões, na temporada dos furacões. Ou terramotos cíclicos, que a terra era fraca. Possivelmente, um vulcão adormecido, mas por adormecido estar era ameaça imorredoira. Podia ser que não houvesse cimento que juntasse ao lugar e ele soasse contraditório, um lugar de nascença mas sentido como forasteiro. Podia ser que não houvesse outra métrica que juntasse as almas ao registo do futuro, a não ser a métrica dos exilados.
O exílio podia ser uma escotilha que se abria sobre as esperanças fundamentadas. As esperanças apenas por antinomia: era como se o terreno exilado pudesse ser qualquer um, desde que não fosse o lugar paradoxalmente forasteiro. Conseguíamos arranjar um dicionário que fosse o passaporte para o lugar exilado. E depois, sem juras de identidade, o exílio – há que não o esquecer – seria a festa desejada para celebrar a liberdade de ser, já não dependente da musculada pertença.
Podia haver diferentes métricas, correspondendo a diferentes exílios. Seria como demandar diferentes lugares, e nós procuradores de uma cosmopolita identidade que se sobrepunha às fronteiras que destinam todos os lugares à exiguidade (por maiores que sejam). Recusando o nomadismo que apequena, depois de levantar as sucessivas camadas de véus que se abatem, silenciosos, sobre o corpo hibernado.
O exílio não seria a recusa do lugar de pertença estranhamente forasteiro. Seria a convocatória de outros lugares, como se a sua demanda participasse na maioridade da alma. Nem que este fosse um fingimento mal encenado: se fosse preciso, o convencimento interior do exílio não como uma evocação destrutiva, contra um lugar que perdeu as margens da identidade; mas como a procura pelo avesso das fronteiras, até que os lugares por demandar congeminassem uma pertença múltipla e sem as algemas da identidade.
Chegava uma altura em que as interrogações esbarravam, incessantes, no peito ferido. E nós, que não capitulamos às anestesias que nos servilizam e condenam à subserviência, inseminamos o exílio como resposta. Procuramos outros palcos, que sejam o fértil mecenato que resgata da decadência ajuramentada.
2.6.23
Todavia – todavia
Sentado no cais, os olhos apreciavam o rio aburguesado, como se adiante houvesse uma represa que o retesasse e ele amesendasse sobre um caudal pusilânime. Um gota de suor do dia descia pela coluna vertebral: a Primavera fazia uns esgares de Verão e a praia estava de sentinela, convidativa, à espera dos veraneantes. E todavia:
Um executivo, apessoado como soem ser os executivos, avançava com celeridade pela marginal fora em cima de uma trotinete silenciosa. Uma senhora distraída e o seu cão (também distraído) iam sendo colhidos pelo executivo, que se desviou a tempo e a tempo de vociferar uns impropérios contra a distração da senhora (e do cão).
Um pouco à frente, uma roulotte de comes e bebes. Uns rapazes, porventura faltosos à escola (é o pessimismo a aflorar), esperavam pela comida com ar de quem já não comia desde ontem. Atiraram-se ao almoço como se aquele fosse o dia do destino.
O ruído de fundo tomou conta do cais. Um paquete deslizava vagarosamente pelo rio à procura do estacionamento. O convés estava cheio de turistas, cheios de apetite pela cidade néon. Naquele momento, a tonelagem do navio de cruzeiros desaburguesou o rio. E todavia:
Na avenida contígua ouviu-se um som estridente, metálico, como se duas matérias compostas de alumínio se fundissem uma na outra, à medida de um bombardeamento que depressa se pressentiu que não era. Dois automóveis enfaixaram-se um no outro. Um idoso em preparos de moço de recados foi o primeiro a chegar à “ocorrência”. Acusou o automóvel de grande cilindrada de ser o culpado – e, pobre homem, não lhe ocorreu, ali na “ocorrência”, que as regras de boa convivência mandam seguir o direito de contraditório. Insistiu na sua justiça: “Eu vi tudo. Este carro preto ia a mais de cem – de certeza que ia a mais de cem, ou a cento e vinte. E não parou no semáforo vermelho”. E todavia:
A sorte da senhora, do cão e do executivo foi terem ficado parados. Distraídos, enquanto se travavam de razões pela outra “ocorrência” que quase tinha ocorrido antes, não deram conta que o semáforo estava verde para os peões. Foi a sua sorte. Tivessem atravessado a avenida com a bênção do semáforo verde e seriam as vítimas colaterais da pressa do ministro sem pasta.
Um mirone – a “ocorrência” já era testemunhada por uma vintena de mirones – sentenciou com a frieza de quem não quer saber se há feridos entre os destroços: “se este ministro tivesse pasta, ao menos admitia-se a pressa.”
A culpa da pressa é das pastas. De todas as pastas, as materiais e as imateriais, as tangíveis e as metafóricas, que carregamos pelo tempo fora.
1.6.23
Morada
E se fôssemos todos nómadas? Haveria propriedade de casas, haveria bancos a locupletarem-se com um importante quinhão do fruto do trabalho, haveria costumes por fazer, matrimónios por excluir, telhados que perdiam a serventia, famílias em vias de serem desfeitas? E se não houvesse a obrigação legal de uma morada e fossem diferentes os lugares onde pernoitamos, sem regra a não ser a impenitente desregra, as mãos assentando no cimento que não endurece? E se fôssemos todos nómadas e em velas acesas atirássemos as juras de sangue para um rio anónimo, antes que a longa mão de Janus nos albardasse, tão docemente instruídos fomos a seremos gregários para que a injúria da misantropia não desça sobre nós?
Convocatória para a condição apátrida: não pode haver laços que tragam o ónus, quase sempre invisível, da obediência, do escrupuloso seguimento dos comandos que se impõem, dizem, a bem da coletividade, a bem da civilização que nos recusa a condição de selvagens hodiernos. Havia requisitos que eram requisitos de outros requisitos, por sua vez exigências que enquadravam um todo incoerente. Burocracias embebidas na carne, como se os burocratas, excitados com as jornadas repetitivas e a interminável ementa de formulários, inventassem um mundo por dentro do mundo só para justificarem a sua existência e fazerem prova de vida da burocracia. E nós, soterrados pelas leis e regulamentos, à mercê do arbítrio dos burocratas, na impossibilidade manifesta de os sabermos existentes (muito menos soletrá-los de cor), sonhamos com os antípodas.
A morada não seria a morada. Seria reinventada. Seria imaterial, sem ceder aos caprichos da geografia – que a geografia exige sempre um local e um sujeito que se sujeita ao local. Seria onde apetecesse for. Hoje aqui, amanhã noutro lugar ainda por saber, depois de amanhã talvez no lugar de partida, ou talvez não. Outra vez: para que as desregras fossem a única regra. Um maestro apenas com instrumentos, sem corpo a sustentar a função. Uma morada sem código postal. A soberania da vontade de quem a quisesse adestrar, contra os códigos de conduta, contra a absurda manta de retalhos que se esconde em poeirentos arquivos mentais.
Até que a morada fosse apenas uma parcimoniosa lembrança da usura a que éramos submetidos, enfim redimidos da servidão servida pelos longos tentáculos intrinsecamente contra a vontade dos dissidentes – contra a vontade, em si.
A morada passaria a ser o lugar mental de quem quisesse sê-lo.