8.6.23

Arroto ao alto, para não parecer mal

The White Stripes, “Icky Thump”, in https://www.youtube.com/watch?v=1OjTspCqvk8

Devia haver um medicamento contra a soberba. Devia ser fungível o gesto fúnebre em que se desfaz a vaidade descalculada. Elevadores supersónicos consumiriam o magma da arrogância. Os seus intérpretes, deixados à reeducação por meios próprios.

Franziu o sobrolho assim que ouviu as estrofes cantadas vertiginosamente por um rapper da moda. Como é possível a cacofonia? – mas esse era um problema seu, que era hostil aos modismos e se insurgia como meio de defesa (a mania de querer ser diferente). Ele há sempre privilégios, não há como combater o insustentável eflúvio de desigualdades. Pobres dos ascetas da igualdade, desafiados pela feição tenebrosa do mundo e pelas pessoas que passam por cima do seu semelhante se essa for a caução para os proventos materiais ou para uma qualquer forma de efémera reputação. Pobres são, que ou afocinham no mundo horrendo que invalida o ideal em que vegetam, ou se refugiam num estado de negação que finge serem diferentes as coisas do seu estatuto.

Antes de atravessar a avenida, enquanto espera que o semáforo verde derrote o vermelho, detém-se na figura que empresta as cores ao semáforo. É um boneco estilizado que pulsa dentro de um coração, ou, vendo melhor, o boneco é um coração que o colonizou e arfa o batimento cardíaco que o suplanta. Ao lado, uma rapariga conferencia com alguém ao telemóvel. Está angustiada. Desconfia que o consorte a traiu.

Na parte mais movimentada da cidade, tem de circundar o estaleiro a céu aberto. Os condescendentes, sempre tributários de um otimismo que irrita, comprovam as obras contínuas como sinal do progresso agendado para um dia destes (ou uma década) destas. Quem deles discorda argumenta que os contínuos estaleiros a céu aberto sinalizam o atraso persistente de que é difícil desligar. Há sempre mais outra obra, e uma obra em cima de uma obra que acabou de ser encerrada, um palimpsesto de obras extinguiu a feição da cidade e o silêncio geral parece sinal do consentimento. Dizem que é para bem dos turistas e que os turistas são o visto de salvação da cidade (e talvez, até, do país). Os habitantes da cidade não contam. O edil é acusado de trair os seus constituintes. (Ou de ter interesses, instalados ou inconfessáveis, na indústria do turismo. E assim trair os seus constituintes.)

Uma varina poveira – ainda há varinas poveiras – transpira energia inesgotável. A tarde acabou de ser parida pela hora do almoço e a mulher continua a apregoar a safra contida no cabaz. A voz da varina não acaba. A meio da conversa com uma senhora reformada, enquanto a clientela espera por atendimento (a senhora reformada queria o conforto de uma conversa com alguém), a varina deixa cair que está a pé desde as três da madrugada. Houvesse quem soubesse do exemplo da varina para não sobrestimar o seu próprio cansaço. 

Dizem que as igrejas são lugares de recolhimento. Exílios pessoais. Para os crentes, santuários onde celebram a sua fé. As igrejas servem para a função procurada por quem as procura. Não há notícia de igrejas onde esteja afixado, e em letras garrafais, que é reservado o direito de admissão. Já o rio que corta a cidade em dois não é esquisito. Quem quiser pode banhar-se nas suas águas. O rio não responde pelas bactérias que possam ser invasoras dos corpos dos expeditos que procurarem as suas águas. Por isso o rio não tem sacerdotes a falar em seu nome.

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