1.6.23

Morada

Trent Reznor & Atticus Ross, “Life on Mars”, in https://www.youtube.com/watch?v=F4fQhHBuvc0

E se fôssemos todos nómadas? Haveria propriedade de casas, haveria bancos a locupletarem-se com um importante quinhão do fruto do trabalho, haveria costumes por fazer, matrimónios por excluir, telhados que perdiam a serventia, famílias em vias de serem desfeitas? E se não houvesse a obrigação legal de uma morada e fossem diferentes os lugares onde pernoitamos, sem regra a não ser a impenitente desregra, as mãos assentando no cimento que não endurece? E se fôssemos todos nómadas e em velas acesas atirássemos as juras de sangue para um rio anónimo, antes que a longa mão de Janus nos albardasse, tão docemente instruídos fomos a seremos gregários para que a injúria da misantropia não desça sobre nós?

Convocatória para a condição apátrida: não pode haver laços que tragam o ónus, quase sempre invisível, da obediência, do escrupuloso seguimento dos comandos que se impõem, dizem, a bem da coletividade, a bem da civilização que nos recusa a condição de selvagens hodiernos. Havia requisitos que eram requisitos de outros requisitos, por sua vez exigências que enquadravam um todo incoerente. Burocracias embebidas na carne, como se os burocratas, excitados com as jornadas repetitivas e a interminável ementa de formulários, inventassem um mundo por dentro do mundo só para justificarem a sua existência e fazerem prova de vida da burocracia. E nós, soterrados pelas leis e regulamentos, à mercê do arbítrio dos burocratas, na impossibilidade manifesta de os sabermos existentes (muito menos soletrá-los de cor), sonhamos com os antípodas.

A morada não seria a morada. Seria reinventada. Seria imaterial, sem ceder aos caprichos da geografia – que a geografia exige sempre um local e um sujeito que se sujeita ao local. Seria onde apetecesse for. Hoje aqui, amanhã noutro lugar ainda por saber, depois de amanhã talvez no lugar de partida, ou talvez não. Outra vez: para que as desregras fossem a única regra. Um maestro apenas com instrumentos, sem corpo a sustentar a função. Uma morada sem código postal. A soberania da vontade de quem a quisesse adestrar, contra os códigos de conduta, contra a absurda manta de retalhos que se esconde em poeirentos arquivos mentais. 

Até que a morada fosse apenas uma parcimoniosa lembrança da usura a que éramos submetidos, enfim redimidos da servidão servida pelos longos tentáculos intrinsecamente contra a vontade dos dissidentes – contra a vontade, em si. 

A morada passaria a ser o lugar mental de quem quisesse sê-lo.

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