13.6.23

Não lembra ao diabo (mas ninguém se lembrou de perguntar ao diabo)

Talking Heads, “Road to Nowhere”, in https://www.youtube.com/watch?v=LQiOA7euaYA

Era preciso virar o labirinto do avesso. Sangrar toda a luz que os satélites deixavam em forma de céu. Acarinhar os gatos vadios (se eles deixassem). Povoar as estrelas com o perfume da alma, para que elas não ficassem cadentes e nós decadentes. 

O maestro dizia, com a bonomia atípica dos maestros, que hoje a orquestra tocava sem pautas; tocava no fio da navalha, como o povo instruído em lugares-comuns costuma metaforizar. Se houvesse um poeta por perto, e se a inspiração não estivesse pelas horas da morte (outro), seriam estrofes a substituir-se às pautas. A música seria a mesma? Ninguém soube responder.

Na luz do dia, as estrelas estão a dormir. Ou a enfeitar a noite de outras longitudes, caso as nuvens não estejam a embaciar a noite. Às vezes, a lua junta-se à festa. E os poetas não dormem. Acreditam na aura de um céu cintilantemente noturno. Vão ao fundo do céu, como se fosse preciso industriar o seu avesso para resgatar as palavras que compõem uma quimera. Os músicos que não estiverem acordados, assistem. Talvez alguns tenham coragem de ensinar meia dúzia de coisas ao maestro habitualmente irascível. Nem que seja preciso virar o labirinto do avesso.

No intervalo do ensaio, os músicos juntam-se na porta dos fundos. Uns fumam (à revelia do maestro ditatorial), outros dão uns passos para trás e para a frente, a memorizar a peça que vão a caminho de ensaiar, outros falam ao telemóvel uma plêiade de coisas com diferentes pessoas. Um gato vadio passa ao largo. Não dá confiança a pessoas – é vadio. A violinista principal agacha-se para convencer o gato a receber um afago. O gato hesita. Meio passo para trás, meio passo para a frente, aninhando-se quando a violinista dá um passo em frente, sem pose agressiva. O gato extasia-se com as festas suaves da violinista. Hoje podia-se gabar. Não é todos os dias que um gato vadio recebe festas de uma artista. Os dedos de uma artista são sedosos, as festas sabem como nunca souberam ao gato vadio.

O maestro desconfiou que a companhia se tinha ausentado pela porta dos fundos. Juntou-se aos músicos, que o receberam a medo. O maestro queria partir o gelo. Andava há dias a pensar nisto – partir o gelo, que do degelo teria de ser feita a relação com os músicos da companhia. Ainda se lembrava do seu mentor, como dizia, entre dois copos de vinho e muito fumo vomitado pelas narinas, que não queria que o respeitassem, mas que dele tivessem medo. E causava-lhe impressão a arrogância, não entendia como podia ser o cimento de uma relação com os músicos da orquestra. Uma amiga dir-lhe-ia, depois desta confidência (só possível porque o vinho adulterava os sentidos), que não lembrava ao diabo que o mentor tivesse dito semelhante coisa.

As palavras do mentor ecoavam enquanto o maestro se divertia, descontraidamente, com a diversidade de coreografias dos músicos da companhia durante o intervalo do ensaios. Aproximou-se da violinista que ainda estava de cócoras a afagar o gato vadio, juntando-se-lhe na pose. “Nunca tive um gato. E apetecia-me ter um. Ajudas-me nas coisas práticas?”, disse, com voz estranhamente carinhosa, perante a surpresa da violinista, não habituada à proximidade do maestro, enquanto o seu pensamento murmurava, espontaneamente, “esta não lembra ao diabo”. 

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