Às vezes, as palavras deviam combinar como hierogamias.
(Do dicionário, hierogamia: casamento ou união sexual entre divindades ou entre uma divindade e um ser humano.)
Deviam rejeitar os vultos que assombram as páginas que esperam as palavras. E mesmo que fosse preciso recorrer a palavras pouco sabidas entre a voz corrente, a voz corrente teria de abrir o dicionário e enriquecer o vocabulário. Os juros acumulados no conhecimento não são embaraço nem há conta que incomodem as autoridades, a menos que os pedaços de conhecimento venham beliscar a propaganda instituída.
Só que o andamento do tempo deixa cicatrizes, por mais entranhada que seja a recusa em admitir que o tempo não está parado. As palavras que se expuseram à hierogamia podem esbarrar na presbiopia das almas a elas expostas.
(Do dicionário, presbiopia, o mesmo que presbitismo: perturbação da visão originada pelo endurecimento do cristalino que não deixa ver com nitidez os objetos próximos, e que tem lugar com o avanço da idade; vista cansada.)
Os mecenas das palavras não escondem que estão túmidos por terem audiência. Os que têm audiência. Os outros, não capitulam: sentem-se túmidos ao relerem o que escreveram. Nem que sejam a única audiência das suas palavras escritas.
(Do dicionário, túmido: orgulhoso, emproado.)
É esse orgulho próprio exsurgido que vem para o mapa das desafeições. Antes de serem dadas à estampa as suas palavras, na véspera, o autor diz-se catecúmeno. Mesmo que seja da ignávia que se alimenta a autoria. A obra pode ser plúmbea para o escasso público que lhe deitou a mão, mas o catecúmeno sabe-a limbífera. As páginas são nédias (para que delas não se diga serem um tédio). Poderão os prândios não ser acessíveis como paga da frequência dos escaparates. Não se importará que dele digam ser pernóstico, pois não são as palavras dos outros que desatam as consumições interiores, são as palavras de que é fautor. Desde que lhe garantam a extinção dos anexins, não se importa de arcar com o estipêndio da injúria. Nem com a acusação de acatalepsia.
Pois, no fundo, tudo o que lhe compete é desdourar os vitrais que os ufanos passeiam a tiracolo. É essa mnemónica que desmente os videirinhos das maravilhas subjacentes. A eles, o rosto puído exposto ao escarnecer dos lúcidos, ainda que os lúcidos sejam uma minoria (dizem: esclarecida, mas não há meio de o esclarecer). Só para exalçar o céu baixo e pesado que se abate sobre as nossas cabeças, como se fôssemos eidéticos (mesmo os que não o sabem).
(Do dicionário, com o obséquio do leitor: exsurgido, catecúmeno, ignávia, plúmbeo, limbífero, nédio, prândio, pernóstico, anexim, acatalepsia, desdourar, exalçar, eidético.)
Sem comentários:
Enviar um comentário