30.6.23

Anónimo em terra alheia (short stories #427)

Thievery Corporation, “Forgotten People” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=u9_Fph5RrT4

          Não se olhe às trevas que esterilizam o olhar. A sementeira pode ser farta se formos os mecenas que as terras esperam. Em vez de serem arregimentadas fronteiras, façamos livres as alfândegas; não sejam pagos estipêndios pela cepa das pessoas, ainda que venham de idiomas diferentes, ainda que diferentes sejam as suas culturas. Dizem: somos todos anónimos em terra alheia. E eu pergunto: não somos todos anónimos na terra que nos é dita ser nossa? Ou então, esta interrogação: e o que interessa o desanonimato (pressupondo que o anonimato é um estigma)? As fundações inamovíveis correspondem à ossatura estrutural das pessoas. E os ossos têm o mesmo nome em todo o lugar. O sangue não canta hinos, não se extasia com bandeiras que atestam uma identidade, não entra em ebulição com heróis que apadrinham uma pertença. Um passo em frente: e se no anonimato se animar o nanismo de cada um de nós, por que temos de verberar o anonimato? A maior compensação do anonimato é (quase) ninguém saber o nosso nome, (quase) ninguém reconhecer o rosto quando saímos à rua, (quase) ninguém dar importância ao que dizemos. Só não somos anónimos para as pessoas que nos habitam a alma. Essa é a melhor desangústia. Os dias repetidos rimam com o anonimato; mas são os dias que contam. O anonimato é a credencial para a liberdade. Os que povoam o palco da visibilidade não partilham a mesma carta de intenções. A igualdade é uma miragem (outra vez). Cuide-se desta discriminação positiva: à imensa maioria dos anónimos, a sinecura da liberdade; aos que gravitam na visibilidade pública, uma liberdade minimalista, castrada. Não podem ser desanónimos – não têm a mesma latitude de gestos, de comportamentos, de palavras, que aos anónimos assiste. Se fôssemos todos anónimos na terra pátria, ninguém seria anónimo em terra alheia. 

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