Não se olhe às trevas que esterilizam o olhar. A sementeira pode ser farta se formos os mecenas que as terras esperam. Em vez de serem arregimentadas fronteiras, façamos livres as alfândegas; não sejam pagos estipêndios pela cepa das pessoas, ainda que venham de idiomas diferentes, ainda que diferentes sejam as suas culturas. Dizem: somos todos anónimos em terra alheia. E eu pergunto: não somos todos anónimos na terra que nos é dita ser nossa? Ou então, esta interrogação: e o que interessa o desanonimato (pressupondo que o anonimato é um estigma)? As fundações inamovíveis correspondem à ossatura estrutural das pessoas. E os ossos têm o mesmo nome em todo o lugar. O sangue não canta hinos, não se extasia com bandeiras que atestam uma identidade, não entra em ebulição com heróis que apadrinham uma pertença. Um passo em frente: e se no anonimato se animar o nanismo de cada um de nós, por que temos de verberar o anonimato? A maior compensação do anonimato é (quase) ninguém saber o nosso nome, (quase) ninguém reconhecer o rosto quando saímos à rua, (quase) ninguém dar importância ao que dizemos. Só não somos anónimos para as pessoas que nos habitam a alma. Essa é a melhor desangústia. Os dias repetidos rimam com o anonimato; mas são os dias que contam. O anonimato é a credencial para a liberdade. Os que povoam o palco da visibilidade não partilham a mesma carta de intenções. A igualdade é uma miragem (outra vez). Cuide-se desta discriminação positiva: à imensa maioria dos anónimos, a sinecura da liberdade; aos que gravitam na visibilidade pública, uma liberdade minimalista, castrada. Não podem ser desanónimos – não têm a mesma latitude de gestos, de comportamentos, de palavras, que aos anónimos assiste. Se fôssemos todos anónimos na terra pátria, ninguém seria anónimo em terra alheia.
30.6.23
Anónimo em terra alheia (short stories #427)
Thievery Corporation, “Forgotten People” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=u9_Fph5RrT4
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