Sentado no cais, os olhos apreciavam o rio aburguesado, como se adiante houvesse uma represa que o retesasse e ele amesendasse sobre um caudal pusilânime. Um gota de suor do dia descia pela coluna vertebral: a Primavera fazia uns esgares de Verão e a praia estava de sentinela, convidativa, à espera dos veraneantes. E todavia:
Um executivo, apessoado como soem ser os executivos, avançava com celeridade pela marginal fora em cima de uma trotinete silenciosa. Uma senhora distraída e o seu cão (também distraído) iam sendo colhidos pelo executivo, que se desviou a tempo e a tempo de vociferar uns impropérios contra a distração da senhora (e do cão).
Um pouco à frente, uma roulotte de comes e bebes. Uns rapazes, porventura faltosos à escola (é o pessimismo a aflorar), esperavam pela comida com ar de quem já não comia desde ontem. Atiraram-se ao almoço como se aquele fosse o dia do destino.
O ruído de fundo tomou conta do cais. Um paquete deslizava vagarosamente pelo rio à procura do estacionamento. O convés estava cheio de turistas, cheios de apetite pela cidade néon. Naquele momento, a tonelagem do navio de cruzeiros desaburguesou o rio. E todavia:
Na avenida contígua ouviu-se um som estridente, metálico, como se duas matérias compostas de alumínio se fundissem uma na outra, à medida de um bombardeamento que depressa se pressentiu que não era. Dois automóveis enfaixaram-se um no outro. Um idoso em preparos de moço de recados foi o primeiro a chegar à “ocorrência”. Acusou o automóvel de grande cilindrada de ser o culpado – e, pobre homem, não lhe ocorreu, ali na “ocorrência”, que as regras de boa convivência mandam seguir o direito de contraditório. Insistiu na sua justiça: “Eu vi tudo. Este carro preto ia a mais de cem – de certeza que ia a mais de cem, ou a cento e vinte. E não parou no semáforo vermelho”. E todavia:
A sorte da senhora, do cão e do executivo foi terem ficado parados. Distraídos, enquanto se travavam de razões pela outra “ocorrência” que quase tinha ocorrido antes, não deram conta que o semáforo estava verde para os peões. Foi a sua sorte. Tivessem atravessado a avenida com a bênção do semáforo verde e seriam as vítimas colaterais da pressa do ministro sem pasta.
Um mirone – a “ocorrência” já era testemunhada por uma vintena de mirones – sentenciou com a frieza de quem não quer saber se há feridos entre os destroços: “se este ministro tivesse pasta, ao menos admitia-se a pressa.”
A culpa da pressa é das pastas. De todas as pastas, as materiais e as imateriais, as tangíveis e as metafóricas, que carregamos pelo tempo fora.
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